Como equilibrar controle do Estado e liberdade contratual em setores estratégicos da economia? A regulação do mercado de seguros enfrenta de longa data essa pergunta. Exemplo disso: a nova Resolução nº 407/2021 do Conselho Nacional de Seguros Privados, que disciplina os chamados seguros de grandes riscos. Este texto trata da filosofia regulatória por trás dessa normativa e de algumas críticas recentes à sua constitucionalidade levadas ao crivo do Supremo Tribunal Federal (STF).
Historicamente, o mercado de seguros é objeto de intensa regulação pública. No Brasil, a autorização, controle e fiscalização dos seguros privados fica a cargo do Conselho Nacional de Seguros Privados (CNSP), órgão ligado ao Ministério da Fazenda e competente para fixar as diretrizes e normas da política nacional de seguros. Para a fiscalizar os agentes econômicos, a CNSP conta com o auxílio da Superintendência de Seguros Privados (Susep), autarquia federal, que atua com observância às normas atinentes aos seguros, em especial, ao Decreto-Lei n.º 73/66.
Na qualidade de executora da política traçada pelo CNSP, a Susep fica responsável por estabelecer regras para os agentes econômicos envolvidos na comercialização e oferta de seguros no país. Por força do art. 36, alínea “c”, do Decreto-Lei n.º 73/66, dentre as funções da Susep de caráter mais intervencionista está fixar cláusulas padronizadas que os seguradores devem incorporar aos seus contratos.
Contudo, a liberdade e flexibilização regulatória foram tomando uma posição de destaque no Brasil. Nos últimos anos, a Susep vem revisando sua regulação para torná-la mais dinâmica e flexível – algo em linha com iniciativas legislativas mais recentes, como a chamada Lei de Liberdade Econômica (Lei 13.874/19)
É nesse contexto que entra em vigor a Resolução n.º 407/2021, que transitou pela teoria dos contratos empresariais propondo uma nova mudança para a modalidade de seguros de grandes riscos, que antes estavam sujeitos ao regime geral de cláusula-padrão, como pouco espaço de adaptações nos contratos.
De forma resumida, ela define que um seguro pode ser contratado sob regime de grandes riscos em duas situações. Primeira: se ele estiver compreendido em certos ramos de atividade econômica, como riscos de petróleo, aeronáutico, marítimo, nucleares e outros (art. 2º, I). E segunda: em qualquer ramo, desde que pactuado entre pessoas jurídicas como limite máximo de garantia maior que R$ 15 milhões, ativo total maior que R$ 27 milhões ou faturamento bruno anual superior a R$ 57 milhões (art. 2º, II, alíneas “a”, “b” e “c”).
Desde que firmado em alguma dessas hipóteses, a Resolução prevê que o contrato de seguro será guiado por alguns “valores básicos”, como “liberdade negocial ampla”, “boa-fé”, “transparência e objetividade das informações”, “tratamento paritário entre os contratantes” e “estímulo às soluções alternativas de controvérsias” (art. 4º). Bem vistas as coisas, essa enunciação de “valores” deixa claro que a intenção do regulador nada mais é do que a de aproximar a disciplina jurídica desses seguros – firmados entre grandes agentes econômicos – à lógica típica de contratos interempresariais do Código Civil. Valem primeiro a autonomia privada, o pacta sunt servanda e boa-fé objetiva. A fixação de conteúdos ao negócio jurídico pelo Estado é excepcional.
Ao consagrar a diferenciação entre seguros massificados e de grandes riscos — amplamente reconhecida internacionalmente — e diminuir a intervenção da Susep nos clausulados destas, permite a comercialização de coberturas que acolham os efetivos interesses dos segurados e tomadores, à luz de suas particularidades, e torna mais concretos os postulados da Lei da Liberdade Econômica. [1] Por outro lado, a própria norma deixa claro, ao definir “grande risco”, que seu regime não excluí o controle estatal sobre cláusulas contratuais de seguros celebrados com consumidores, instrumentalizados em contratos de adesão.
Assim, o ato normativo confere às seguradoras autonomia para estruturar e negociar os contratos que envolvem grandes riscos, de forma que torna possível a personalização e adaptação dos seguros às necessidades de cada negócio, promovendo uma regulação menos intrusiva e mais principiológica.
Contudo, ao passo que foi uma contribuição significativa para o mercado securitário, essa mudança também originou controvérsias no Superior Tribunal Federal, veiculadas na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n.º 7.074/DF ajuizada em fevereiro de 2022, sob relatoria do Ministro Gilmar Mendes. A relatoria da referida ação ficou sob relatoria do ministro Gilmar Mendes e pretendia que fosse declarada a inconstitucionalidade da Resolução n° 407/2021.
A demanda pede que a Resolução n.º 407/2021 seja declarada inconstitucional, sustentando que o ato normativo violou os princípios da reserva legal, da ordem econômica e do interesse público. Ao ver do autor da ADI, o CNSP alterou classificações e formas de interpretação dos contratos, extrapolando sua competência para fixar diretrizes da política de seguros privados e características gerais dos contratos de seguros. [2]Em suma, as principais alegações apresentadas foram no sentido de que a competência para legislar sobre o direito civil e o direito securitário seria da União (artigo 22, incisos I e VII, da CF), e que, assim, o CNSP teria extrapolado as suas competências regulatórias. [3]
Caberá ao Supremo Tribunal Federal, portanto, a palavra final sobre se mantém a Resolução nº 407/2021 no sistema jurídico, prestigiando a autonomia de agentes econômicos sofisticados e de grande porte, ou se retorna ao modelo regulatório anterior de cláusulas-padrão pensado para relações de consumo.
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[1]https://www.conjur.com.br/2022-jun-14/seguros-contemporaneos-seguros-grandes-riscos-brasil-parte/
[2]https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=481646&ori=1
[3]https://www.conjur.com.br/2022-jun-14/seguros-contemporaneos-seguros-grandes-riscos-brasil-parte/