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Para além da Covid-19: a reação do Judiciário a eventos de força maior com abrangência nacional

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Por Daniel Fernando Victoriano, trainee na Poletto & Possamai Sociedade de Advogados e graduando em Direito pela Universidade Federal do Paraná

O cenário atual realça, mais do que nunca, a enorme valia do princípio da boa-fé contratual, tema já explorado por nossa equipe em publicações anteriores[1].

Em meio às medidas de restrição cada vez mais graves, somadas à incerteza de uma data para o retorno ao status quo ante, muito se diz acerca dos impactos econômicos vindouros, bem como acerca de seus reflexos jurídicos, com o aumento exponencial de contratos inadimplidos e, como consequência para o mercado securitário, a maior taxa de reclamações de sinistro.

Nesse sentido, insta observar não apenas o que a Lei diz sobre este tipo de situação, mas também o modo como o Judiciário brasileiro reagiu em contextos “semelhantes” – entre muitas aspas, em consideração ao caráter extraordinário do momento presente.

Isso porque, mesmo antes da pandemia causada pelo novo Coronavírus, os Tribunais de Justiça já tiveram de encarar situações de força maior que acabaram por dificultar ou, até mesmo, impossibilitar o cumprimento de obrigações contratuais em âmbito nacional.

A atual pandemia se enquadra no conceito de “força maior”, uma vez que nela se observa “fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir”, segundo definição do Código Civil (art. 393, parágrafo único).

Sua aplicação foi reconhecida, por exemplo, na primeira pandemia do século XXI, causada pela Gripe A (H1N1). No entanto, por conta de suas menores taxas de transmissão e de letalidade, a pandemia provocada pelo vírus H1N1 teve impactos significativamente mais amenos que a atual.  Suas consequências jurídicas, por exemplo, raramente são vistas na jurisprudência da época.

Ao máximo, podem-se citar casos de consumidores que tiveram de cancelar suas viagens internacionais por conta da alta disseminação da doença no país ao qual se destinavam. Por essa ótica, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal considerou “comprovado o motivo de força maior para o cancelamento da viagem, qual seja, a ocorrência de casos confirmados, nos Estados Unidos, de infecção pelo vírus influenza A (H1N1), altamente contagioso, e popularmente conhecido por ‘gripe suína’[2]

Assim, pelo que se analisa da jurisprudência brasileira, não foi grande o impacto da H1N1 sobre as obrigações contratuais vigentes à época. Arrisca-se dizer que até mesmo a epidemia de um vírus inofensivo ao ser humano, o chamado Vírus da Síndrome da Mancha Branca, responsável por afetar as criações de crustáceos por toda a costa brasileira no início deste século, gerou um número maior de rescisões contratuais.

Cite-se, a título de exemplo, caso em que o Tribunal de Santa Catarina declarou a inexigibilidade de débitos inadimplidos por entender que “desafortunadamente, a partir do ano de 2004, a carcinicultura catarinense viu-se atingida por epidemia viral denominada ‘mancha branca’, a qual atingiu a criação de crustáceos do apelante. […] No caso, o sinistro que prejudicou o cultivo do apelante não poderia ter sido evitado, logo, aplicável o reconhecimento do caso fortuito ou força maior como razão do inadimplemento[3].

Em outra vertente, muitas das medidas impostas pelos estados brasileiros para conter o avanço da Covid-19 podem se enquadrar no conceito jurídico de fato do príncipe, ou seja, atos da Administração Pública que dificultam o cumprimento de uma obrigação contratual. Embora este conceito tenha-se desenvolvido no âmbito dos contratos administrativos, sua aplicação já foi admitida em contratos privados.

Pode-se citar, como exemplo, caso concreto em que a prestação de serviços de uma empresa brasileira ao governo iraquiano foi prejudicada por conta do embargo econômico imposto pela ONU em 1990, ao qual o Brasil aderiu por meio do Decreto 99.441/90. No caso, a Corte reconheceu que o fato do príncipe rompeu o nexo causal entre o resultado danoso e a conduta do particular. Noutras palavras, “diante da existência de uma causa externa, imprevisível e irresistível, emanada da Administração Pública, o direito não impõe a qualquer das partes privadas o suporte exclusivo dos prejuízos daí advindos[4].

Situação semelhante ocorreu na mesma época com as implicações econômicas do Plano Collor. Por bloquear grande massa de dinheiro existente no mercado, o STJ o caracterizou como medida governamental factum principis. Portanto, ao julgar caso em que os compradores de um imóvel deixaram de adimplir as prestações mensais e o vendedor reteve as arras, foi reconhecida a “força maior motivadora da dissolução do vínculo contratual, impondo-se, em consequência o retorno ao status quo ante[5].

Observe-se, no entanto, que, fora os casos trazidos à tona por meio do presente artigo, a jurisprudência ainda é incipiente sobre cenários como o atual – de uma força maior que se estende por todo o território nacional, dada o quão inéditas se demonstram

tanto as medidas restritivas lançadas pelos estados quanto a cooperação de parcela relevante da população no que diz respeito ao isolamento social.

Nesse sentido, Ronald Dworkin associa a interpretação dos juízes a um romance em cadeia[6], comparando o Direito a uma narrativa histórica composta pelas contribuições individuais de diversos “romancistas”. Por esse ponto de vista, os próximos capítulos devem ser congruentes com o que já está escrito, a fim de que a história tenha um mínimo de consistência e harmonia.

Cabe aos tribunais, portanto, não apenas aplicar as disposições legais já existentes em nosso ordenamento, como também manter a coerência com os fundamentos jurídicos utilizados em seus julgados anteriores, aprimorando-os ao contexto vigente.

[1] Veja-se: BORG. Rafael Leonardo. Covid-19 e seguro-garantia: momento pede cooperação entre segurado, tomador e seguradora; MAIA. Fabiana Meira. Impactos da suspensão de contratos em função da pandemia da Covid-19 na cobertura do Seguro-Garantia; NETO. João Constanski. Responsabilidade civil contratual em tempos de pandemia. Todos disponíveis em: <https://poletto.adv.br/artigos>. Acesso em: 12 mai. 2020.
[2] TJ-DF, Apelação Cível no Juizado Especial nº 0015065-96.2010.8.07.0007, Relator: Des. José Guilherme de Souza, 2º Turma Recursal dos Juizados Especiais, Julgado em: 06/03/2012.
[3] TJ-SC, Apelação Cível nº. 0003458-13.2010.8.24.0040, Relatora: Des. Janice Goulart Garcia Ubialli, Quarta Câmara de Direito Comercial, Julgado em: 10/09/2019.
[4] STJ, Recurso Especial nº. 1.280.218/MG, Relator: Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, Julgado em: 21/06/2016
[5] STJ, Recurso Especial nº. 42.882/SP, Relator: Min. Salvio de Figueiredo Teixeira, Quarta Turma, Julgado em 08/05/1995.
[6] DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 279.

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