Rafael Leonardo Borg, advogado do Núcleo de Contratos
Ocorreu um aumento exponencial na identificação de casos de corrupção no Brasil nos últimos anos, em especial após a deflagração da Operação Lava Jato (iniciada em 2014). A sensação de corrupção no Brasil acompanhou tal crescimento, tendo alcançado o seu mais alto nível de acordo com a última edição do Índice de Percepção da Corrupção, elaborado pela Transparência Internacional.[1]
O índice classifica o quão corrupto o setor público é percebido por especialistas e executivos de empresas. Na última edição publicada no começo de 2019, o Brasil caiu nove posições e ocupa a 105ª posição em um conjunto de 180 países analisados.
Nesse cenário, surgem iniciativas de combate e prevenção à corrupção, tanto na esfera legal e contratual e impulsionadas por atores do setor público e privado. Conhecida como Lei Anticorrupção, a Lei nº 12.846/2013 tem sido amplamente utilizada em contratos em geral (administrativos e particulares) como mecanismo de contenção de atos de pessoas jurídicas contra a administração pública nacional ou estrangeira, motivando a inclusão de cláusulas específicas para desencorajar certas condutas por parte de contratantes.
O mercado securitário se insere nessa tendência. A inclusão de cláusula nas condições particulares das apólices de seguro garantia dispondo sobre a não cobertura de prejuízos decorrentes de atos de corrupção se tornou prática comum, devido ao receio das seguradoras de arcar com indenizações em virtude do inadimplemento de contratos pela constatação de atos corrupção.
Ocorre que muitas das cláusulas padrões de anticorrupção inseridas pelas seguradoras apresentam textos genéricos e extremamente abrangentes no que diz respeito a não cobertura, motivando um grande número de questionamentos por parte de segurados quanto à legalidade de tais cláusulas. Por esse motivo, a SUSEP publicou em 16 de Agosto de 2018 a Carta Circular Eletrônica nº 1/2018, formalizando o posicionamento oficial do órgão regulador com relação à adequação da redação das cláusulas anticorrupção nos produtos emitidos pelas seguradoras.
Resumindo o entendimento da SUSEP, a perda de cobertura derivada de atos de corrupção foi equiparada à identificação de ato doloso do segurado ou seu representante, em consonância com o art. 762 do Código Civil[2] e item 11, IV das condições gerais da Circular SUSEP 477/2013[3] (a qual “dispõe sobre o Seguro Garantia, divulga Condições Padronizadas e dá outras providências”).
Ou seja, a redação das cláusulas inseridas pelas seguradoras nas apólices de seguro garantia somente poderão dispor que não estarão cobertos atos dolosos violadores de normas anticorrupção perpetrados pelo segurado ou seu representante legal. Caso apenas o tomador tenha infringido normas anticorrupção sem concurso ou conhecimento do segurado e tal infração resulte em inadimplemento do contrato garantido pela apólice, resta o dever da seguradora de indenizar.
Ilustra-se tal situação com um exemplo prático: uma empresa vence uma licitação e é contratada pela administração pública para executar um empreendimento. A empresa contrata uma apólice de seguro garantia (na qualidade de tomador) que garante a execução do contrato em benefício da administração pública (o segurado da apólice). No entendimento da SUSEP, só é lícito para a seguradora se negar a indenizar a administração pública caso esta ou seus representantes participem dolosamente dos atos de corrupção verificados no contrato. Se apenas a empresa cometeu atos de corrupção, a seguradora não poderá se negar a indenizar à administração pública sob esse fundamento.
Tal entendimento foi recentemente confirmado pelo Tribunal de Contas da União, por meio do Acórdão nº 1.216/2019. Referido acórdão respondeu ao seguinte questionamento: “Os órgãos e entidades da Administração Pública Federal devem aceitar ou recusar apólice de seguro – apresentada por empresa vencedora de certame licitatório para garantir o fiel cumprimento das obrigações assumidas no contrato – que contenha cláusula que exclua de cobertura prejuízos e demais penalidades causados ou relacionados a atos ou fatos violadores de normas de anticorrupção?”.
Em seu voto, o relator ministro Raimundo Carreiro reconheceu as peculiaridades do seguro garantia, citando o conceito do sócio da Poletto & Possamai Gladimir Poletto e compartilhando de seu entendimento quanto à natureza jurídica deste produto securitário. O relator afirmou que as normas do Código Civil são aplicáveis ao produto, ressalvadas suas peculiaridades, e que dentre essas normas se insere o art. 762 e o princípio de que ninguém pode se beneficiar da própria torpeza.
Portanto, firmou o entendimento de que é lícito às seguradoras inserirem cláusula que exclua da cobertura da apólice de seguro garantia prejuízos relacionados a violação de normas anticorrupção com participação dolosa do segurado e seus representantes. Contudo, ao exemplo do entendimento da SUSEP, afirmou que as entidades da administração pública federal devem recusar apólice de seguro garantia com exclusão de cobertura quando a violação das normas anticorrupção for provocada somente pelo tomador.
Os demais ministros do TCU coadunaram com tal entendimento. Trata-se de uma decisão favorável às seguradoras, visto que privilegia o princípio da boa fé nos contratos de seguro. No entanto, o entendimento tanto da SUSEP como do TCU implica a necessidade das companhias de seguro de tomarem cuidados adicionais em suas cláusulas padrões anticorrupção, evitando redações demasiadamente abrangentes e que excluam a cobertura sem participação dolosa do segurado.
[1] Disponível no site: https://transparenciainternacional.org.br.
[2] Art. 762. Nulo será o contrato para garantia de risco proveniente de ato doloso do segurado, do beneficiário, ou de representante de um ou de outro.
[3] 11. Perda de Direitos: O segurado perderá o direito à indenização na ocorrência de uma ou mais das seguintes hipóteses: (…)
IV – Atos ilícitos dolosos ou por culpa grave equiparável ao dolo praticados pelo segurado, pelo beneficiário ou pelo representante, de um ou de outro;