Rafael Leonardo Borg é Head do núcleo de Seguros do escritório Poletto & Possamai
Em regra, o prazo prescricional aplicável à pretensão do segurado em face da seguradora (e vice-versa) é de um ano, conforme previsão do art. 206, §1º, II do Código Civil. Há uma lógica socioeconômica por traz desse prazo curto para a prescrição: as sociedades seguradoras devem observar uma série de normas da Superintendência de Seguros Privados – SUSEP relativas à constituição de provisões técnicas, tanto com base em eventos ocorridos (abrangendo os sinistros já avisados à seguradora e ainda não liquidados e os sinistros que ainda não foram avisados) como em eventos futuros (também chamadas de “reservas de prêmios”). A função de tais provisões técnicas é assegurar a saúde financeira das seguradoras, gerando confiança e estabilidade no mercado securitário.
No entanto, é fundamental que tais provisões sejam corretamente dimensionadas. Se houver excesso de constituição de reservas técnicas, as seguradoras operam de maneira menos eficiente, uma vez que terão menos capacidade para emitirem novas apólices. O prazo curto de prescrição contribui para o balanço financeiro das seguradoras, permitindo a estas projetar as reservas técnicas feitas sob parcela dos riscos assumidos em um espaço menor de tempo. Mais importante, a sociedade como um todo também é beneficiada, em razão dos preços menores de prêmio que são cobrados com a maior eficiência do mercado securitário.
Tal lógica deveria se aplicar a todos os ramos de seguro, mas as seguradoras que operam com seguro-garantia do ramo público não raro são surpreendidas com decisões no judiciário que aplicam o prazo prescricional de cinco anos previsto no art. 1º do Decreto nº 20.910/32 para as pretensões dos segurados entes públicos. Os fundamentos utilizados em tais julgados variam: em alguns casos, argumenta-se que o contrato de seguro-garantia celebrado entre a Administração Pública e a seguradora deve ser regido pelas normas de direito público, inclusive no que diz respeito ao prazo prescricional; em outros casos, alega-se que, muito embora o seguro-garantia seja um contrato de direito privado, ele também é acessório ao contrato principal, de modo que deve seguir a sorte deste inclusive com relação ao prazo prescricional aplicável.
Tais argumentos não procedem. A posição prevalente na doutrina é de que a Administração Pública, ao contratar uma apólice de seguro, celebra um contrato regido por normas de direito privado, posição que era reforçada pela previsão expressa contida no art. 62, §3º, I da antiga Lei de Licitações. Embora o contrato de seguro firmado com um ente público esteja sujeito a cláusulas exorbitantes previstas em normas de direito público, tais prerrogativas da Administração Pública não incluem disposições relativas ao prazo prescricional, o qual deve seguir o Código Civil (lei aplicável aos contratos de seguro). Do mesmo modo, o fato do seguro-garantia ser acessório do contrato principal objeto da garantia não lhe retira a essência de seguro (POLETTO, Gladimir. O Seguro Garantia: em busca de sua natureza jurídica. Rio de Janeiro: FUNENSEG, 2003, p. 75), devendo ser aplicado o prazo prescricional estabelecido pelo legislador para esse tipo de contrato específico.
A despeito da inconsistência jurídica dos argumentos que defendem a aplicação do prazo de cinco anos ao seguro-garantia do ramo público, alguns julgados seguem acatando tal posição equivocada (notadamente no TJSP, embora não de forma majoritária). Ocorre que no final do ano de 2021 o STJ proferiu o Resp nº 1.303.374/ES, sob a sistemática de Incidente de Assunção de Competência (gerando um precedente vinculante, portanto, conforme previsão do art. 927, III do Código de Processo Civil). A tese firmada pela corte foi a seguinte: “deve ser ânuo o prazo prescricional para exercício de qualquer pretensão do segurado em face do segurador (e vice-versa) baseada em suposto inadimplemento de deveres (principais, secundários ou anexos) derivados do contrato de seguro”.
O caso de fundo tratado pelo STJ dizia respeito ao descumprimento de obrigações acessórias de seguro de vida, de modo que não foi abordado de forma específica a discussão no seguro-garantia entre o prazo ânuo e prazo quinquenal para a prescrição. Não obstante, o que vale aqui para fins de precedente é a ratio decidendi do acórdão (isto é, os fundamentos centrais da decisão). Nesse ponto, destaca-se os votos tanto do Ministro Relator Luiz Felipe Salomão e da Ministra Nancy Andrighi, que afirmaram que o prazo de prescrição envolvendo operação de seguro sempre deverá ser de um ano (salvo as exceções previstas de forma expressa na lei) em razão das peculiaridades da operação de seguro, atividade econômica que demanda a constituição de reservas técnicas que devem ser limitadas em um curto espaço de tempo.
Em seu voto, o Ministro Luiz Felipe Salomão inclusive rebate a tese de que se poderiam aplicar outros prazos no contrato de seguro, por qualquer motivo que seja (os exemplos dados foram o prazo quinquenal do Código de Defesa do Consumidor e o prazo trienal do Código Civil para reparação civil). O mesmo raciocínio deve ser aplicado para a tentativa despropositada de aplicar o prazo quinquenal do Decreto nº 20.910/32 no seguro-garantia do ramo público. Não há dúvidas de que o entendimento firmado pelo STJ se estende ao seguro-garantia, produto que é emitido por companhias sujeitas às mesmas normas de provisionamento técnico que valem para todas as seguradoras autorizadas a operar no Brasil.
O precedente obrigatório do STJ é importante para gerar mais segurança jurídica nas operações de seguro, em especial do seguro-garantia do ramo público, segmento do mercado que até então era impactado pela incerteza envolvendo a prescrição das pretensões indenizatórias. Agora cabe aos tribunais brasileiros ajustarem sua jurisprudência de acordo, possibilitando às seguradoras atuarem de maneira eficiente para reduzir o custo da garantia de contratos públicos fundamentais para o desenvolvimento do país.