No âmago da criação da ideia de pessoa jurídica, está a separação: uma personalidade jurídica (distinta) permite e implica existência distinta e patrimônio distinto das pessoas naturais que a tenham criado.
Entretanto, quando há desvio da finalidade da pessoa jurídica (quando a atividade realizada não se relaciona com a atividade lícita sob a qual foi criada, mas em benefício dos sócios) ou, ainda, quando há confusão patrimonial (quando não se distingue com clareza o patrimônio da pessoa jurídica do patrimônio particular dos sócios), estamos diante do abuso da personalidade jurídica.
Nesse caso, adotando a Teoria Maior da Desconsideração da Personalidade Jurídica positivada no art. 50 do Código Civil[1], o ordenamento jurídico permite levantar o véu corporativo, excepcionalmente e em geral, quando há prova do desvio de finalidade ou da confusão patrimonial, descritos nos §§ 1º e 2º do dispositivo.
Com competência para construir o significado normativo e dar unidade ao Direito, o Superior Tribunal de Justiça, no último 29 de agosto, decidiu pela afetação da tese relativa ao cabimento ou não da desconsideração da personalidade jurídica no caso de mera inexistência de bens penhoráveis e/ou eventual encerramento irregular das atividades da empresa (Tema 1210/STJ), sem suspensão de recursos especiais.
Como representativos da controvérsia, foram afetados os REsps 1.873.187/SP e 1.873.811/SP ao rito dos recursos repetitivos (art. 1.036 do Código de Processo Civil), para efeitos do art. 927 do mesmo diploma, já que, nas palavras do Exmo. Relator do REsp 1.873.187/SP, Min. Raul Araújo, “a tese a ser adotada sob o rito singular contribuirá para oferecer maior segurança e transparência na solução da questão pelas instâncias de origem e pelos órgãos fracionários desta Corte, porquanto o tema é recorrente e ainda não recebeu solução uniformizadora, concentrada e vinculante, sob o rito especial dos recursos repetitivos”.
A Corte vinha entendendo e fixado orientação no sentido de que a desconsideração da personalidade jurídica se trata de medida excepcional e está subordinada à efetiva comprovação do abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial (AgInt no AREsp n. 2.021.508/RS, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 11/4/2022, DJe de 19/4/2022).
Por isso, não se poderia desconsiderar a personalidade jurídica de sociedade empresária devedora para alcançar o patrimônio dos seus sócios com base apenas no seu encerramento irregular e na ausência de bens penhoráveis (AgInt no AgInt no AREsp n. 1.778.746/SP, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 2/5/2022, DJe de 11/5/2022). Também nesse sentido: AgInt no AREsp n. 1.852.233/SP, AgInt no AREsp 1712305/SP e AgInt no AREsp n. 924.641/SP.
O entendimento dominante no tema firmou-se, assim, na linha de que a medida de desconsideração da personalidade jurídica somente pode ser decretada após a análise, no caso concreto, da existência de vícios que configurem abuso de direito, que não se presumiria em casos de dissolução irregular ou de insolvência (AgInt no REsp 1.812.292/RO, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 18/05/2020, DJe de 21/05/2020).
A confusão patrimonial e/ou o desvio de finalidade, requisitos considerados no abuso da personalidade jurídica, deveriam restar demonstrados para que a desconsideração seja decretada. É dizer, em demandas executivas, por exemplo, a ausência de bens penhoráveis de titularidade da empresa devedora, sem indicação de prática de qualquer abuso, excesso ou infração ao estatuto social e/ou à lei, não ensejaria a concessão da medida na óptica do STJ.
Apesar de firmada a orientação da Corte, sendo possível prenunciar a solução da controvérsia, a questão não tem ainda resolução sob sistemática vinculante (nos termos do CPC). Por essa razão, a afetação agora sob o rito especial de julgamento de recursos repetitivos significa mais pela definição paradigmática que vem ao encontro da necessidade de racionalização da atividade judiciária.
Ainda se aguarda a definição concentrada, que virá com o julgamento dos recursos afetados, e cuja tese firmada disciplinará os casos que versam sobre idêntica controvérsia (art. 1.039 do CPC). Em outras palavras, as razões oriundas do julgamento (razões determinantes de decidir, ratio decidendi) servirão tendencialmente como precedente e nessa linha devem irradiar seus efeitos para todas as questões idênticas ou semelhantes[2], imbuindo a orientação da Corte da força vinculante concedida pelo art. 927, III, do CPC.
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[1] Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso
[2] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Código de Processo Civil comentado. 7ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 1208.