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ITBI e necessária adequação da legislação municipal à Constituição

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Por Giovana Novaes, Advogada do Núcleo Contencioso do escritório Poletto & Possamai.

Transações imobiliárias no Brasil são marcadas por incompreensões e incertezas quando o assunto é a cobrança de ITBI, imposto de competência municipal que se origina de atos que importem a transmissão onerosa de bens imóveis e respectivos direitos reais, bem como cessão de direitos a sua aquisição (artigo 156, inciso II, da Constituição).

Embora a Constituição e o Código Tributário Nacional (CTN) estabeleçam regras gerais e princípios em matéria tributária, os municípios possuem atribuição para editar leis próprias sobre tributos de sua competência, o que, em termos práticos, significa dizer que desfrutam de certa autonomia na construção dessas normativas (tema fértil a debates).

Ocorre que esse campo restrito de discricionaridade resulta, não raro, na edição de leis que destoam do texto constitucional e ofendem outras normativas tributárias. Com isto, o Judiciário é chamado a solucionar as controvérsias instauradas entre fisco e contribuintes, o que gera um ambiente propenso ao debate e, assim, à construção de precedentes.

Com o ITBI não é diferente.

Ao julgar o Recurso Extraordinário nº 1.294.969 (Tema 1.124) o Supremo Tribunal Federal afastou a tese do município de São Paulo no sentido de que o registro em cartório de compromisso de compra e venda seria irrelevante para fins de definição do momento da incidência tributária (critério temporal). O fisco, neste caso, quis exigir o imposto antes da efetiva transferência imobiliária, isto é, quando ainda não consumado o fato gerador do tributo. Com amparo no texto constitucional, nas disposições do CTN e do Código Civil, o STF definiu a seguinte tese de repercussão geral: “O fato gerador do ITBI somente ocorre com a efetiva transferência da propriedade imobiliária, que se dá mediante o registro”.

A incidência do ITBI nas hipóteses de construções futuras — tema bastante corriqueiro nas incorporações imobiliárias — também é objeto de intenso debate nos Tribunais, uma vez que diversos municípios divergem quanto à base de cálculo do imposto. Precedentes do Superior Tribunal de Justiça convergem no sentido de prestigiar o cálculo do imposto apenas considerando o valor venal da fração ideal do terreno, em linha com os enunciados das Súmulas 110 [1] e 470 [2] do STF.

Em sentido semelhante decidiu o Tribunal de Justiça do Paraná ao julgar caso envolvendo contrato de permuta imobiliária em que as partes avençaram a construção futura de um empreendimento. De acordo com o voto condutor lavrado pelo desembargador Eduardo Sarrão, relator da Remessa Necessária nº 0060606-96.2021.8.16.0014: “Não há dúvida, assim, de que, tendo ocorrido a transmissão apenas do terreno — e não das unidades autônomas e garagens, que sequer foram construídas e, portanto, inexistiam à época da transmissão —, é o valor dele, e somente dele, que pode servir de base de cálculo do ITBI”.

Outro debate significativo se deu no REsp nº 1.937.821-SP, julgado sob a sistemática dos recursos repetitivos. Em decisão publicada em 3 de março de 2022, a 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça firmou o entendimento de que a base de cálculo do ITBI é o valor do imóvel transmitido em condições normais de mercado, sendo vedado aos municípios calcular o imposto com base em valor de referência estabelecido de forma unilateral. Assim, cabe ao fisco instaurar regular processo administrativo caso discorde do valor de transação declarado pelo contribuinte, cuja boa-fé é presumida (artigo 148, CTN).

Em suma, o precedente é importante porque afasta de vez a polêmica e reiterada conduta das prefeituras de atribuírem ao ITBI o mesmo valor utilizado para a cálculo do IPTU, sem levar em consideração critérios mercadológicos fundamentais de precificação do bem. Resta saber se os municípios contrários a esse posicionamento estão dispostos a revisitar suas legislações.

 No plano das imunidades, merece destaque o mais recente entendimento do Supremo, proferido no julgamento do Recurso Extraordinário 796.376/SC, no qual fixou-se a seguinte tese de Repercussão Geral: “A imunidade em relação ao ITBI, prevista no inciso I do §2º do artigo 156 da Constituição Federal, não alcança o valor dos bens que exceder o limite do capital social a ser integralizado”.

É importante realçar que a construção deste procedente partiu de uma reflexão sobre as duas partes dos incisos do artigo analisado. O voto vencedor, proferido pelo ministro Alexandre de Moraes, destacou que “a exceção prevista na parte final do inciso I, do § 2º, do artigo 156 da CF/88 nada tem a ver com a imunidade referida na primeira parte desse inciso”, concluindo, assim, que imunidade prevista constitucionalmente para integralização de imóveis ao patrimônio de pessoa jurídica é incondicionada.

As razões de decidir que levaram à construção deste importante precedente abrem caminhos para o contribuinte reivindicar seu direito à imunidade em relação ao ITBI na integralização de imóveis, independentemente de qual de suas atividades seja a preponderante, visto que as ressalvas feitas ao final do artigo 156, §2º da Constituição se referem apenas à segunda parte de suas previsões (e não à integralização de imóvel).

Em suma, os precedentes já formados e os que tendem a surgir reforçam a necessidade urgente de uma adaptação das legislações locais às normas constitucionais como forma de garantir os direitos fundamentais dos contribuintes e preservar a segurança jurídica. Enquanto isso não acontece, cabe ao interessado questionar judicialmente incongruências no lançamento do tributo, inclusive para reaver valores pagos a maior no passado, bem como implementar disposições nos instrumentos jurídicos pertinentes às transações imobiliárias a fim de prevenir futuras controvérsias com o fisco.

[1] O imposto de transmissão “intervivos” não incide sobre a construção, ou parte dela, realizada pelo adquirente, mas sobre o que tiver sido construído ao tempo da alienação do terreno.

[2] O imposto de transmissão “intervivos” não incide sobre a construção, ou parte dela, realizada, inequivocamente, pelo promitente comprador, mas sobre o valor do que tiver sido construído antes da promessa de venda.

 

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