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Aplicabilidade do incidente de desconsideração da personalidade jurídica no ordenamento jurídico brasileiro

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Com o objetivo de aproximar a norma processual da norma material do direito civil, o incidente de desconsideração da personalidade jurídica introduzido pelo Código de Processo Civil em vigor surgiu para legitimar a possibilidade de afastamento da personalidade jurídica das sociedades empresariais.  Por se tratar de um tema relativamente recente no ordenamento jurídico brasileiro, faz-se necessário uma análise objetiva das recentes decisões judiciais que discutem o tema nos tribunais pátrios.

O artigo 795 do Código de Processo civil prevê que os bens particulares dos sócios não respondem pelas dívidas das sociedades empresariais. As empresas possuem personalidade própria e são capazes de adquirir direitos e assumir obrigações por si mesmas. Em regra, o seu próprio patrimônio responde por suas dívidas e obrigações, conforme o princípio da autonomia patrimonial.

Nesse sentido, a Lei da Liberdade Econômica (Lei n. 13.874/2019) introduziu no Código Civil relevantes disposições a respeito da autonomia patrimonial da pessoa jurídica. Com efeito, o art. 49-A do Código Civil estabelece que a pessoa jurídica não se confunde com os seus sócios, associados, instituidores ou administradores. O parágrafo único daquele dispositivo prevê ainda que a “autonomia patrimonial das pessoas jurídicas é um instrumento lícito de alocação e segregação de riscos, estabelecido pela lei com a finalidade de estimular empreendimentos, para a geração de empregos, tributo, renda e inovação em benefício de todos”.

Ocorre que a personalidade jurídica das sociedades empresárias deve ser usada para propósitos legítimos da atividade empresarial, em conformidade com a regra do artigo 50 do Código Civil, que em caráter excepcional permite a desconsideração da personalidade jurídica nos casos de abuso dessa personalidade, expressamente caracterizado: i) pelo desvio de finalidade; ou ii) pela confusão patrimonial.

O art. 50 do Código Civil, em conformidade com o texto incluído pela Lei da Liberdade Econômica, inova ao conceituar o desvio de finalidade e a confusão patrimonial. De acordo com os seus parágrafos 1º e 2º, o desvio de finalidade é “a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza”, enquanto a confusão patrimonial é “a ausência de separação de fato entre os patrimônios”, caracterizada por cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa, transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante e outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial.

Os requisitos de desvio de finalidade e confusão patrimonial previstos pelo art. 50 do Código Civil são de natureza objetiva, inexistindo previsão legal de dolo ou fraude como requisito para a desconsideração da personalidade jurídica. Daí o entendimento doutrinário de que a imposição, por via jurisprudencial, da exigência de dolo ou fraude diverge do texto legal e da tendência identificada no direito comparado no sentido de superar concepção subjetivista na aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, alinhada à objetivação dos critérios de incidência dessa medida, a exemplo do que ocorreu com o princípio da boa-fé.[1]

O entendimento atual do Superior Tribunal de Justiça é que o desvio de finalidade estaria caracterizado pelo ato intencional dos sócios em fraudar terceiros com o uso abusivo da personalidade jurídica. E a confusão patrimonial seria a inexistência, no campo dos fatos, de separação patrimonial entre o patrimônio da pessoa jurídica e dos sócios ou, ainda, dos haveres de diversas pessoas jurídicas.[2]

Nessas hipóteses, os artigos 133 a 137 do Código de Processo Civil em vigor estabelecem o procedimento a ser seguido no incidente próprio de desconsideração da personalidade jurídica. Trata-se de uma importante inovação processual, a fim de estabelecer as condições para a apuração, de forma incidental ao longo do processo, das justificativas pelas quais o direito material permite a desconsideração da personalidade jurídica, legitimando o que a prática forense convencionou chamar de “redirecionamento da execução”[3].

Existem duas teorias que norteiam os debates sobre a desconsideração da personalidade jurídica: a teoria maior e a teoria menor. A primeira, refere-se à situação em que ocorre a distorção da personalidade jurídica, exigindo a presença dos requisitos de abuso da personalidade jurídica e prejuízo ao credor; a segunda, diz respeito ao simples inadimplemento das obrigações da sociedade, demandando apenas o requisito de prejuízo ao credor.

Amparado em julgado proferido pelo STJ em 2014[4], de relatoria da Ministra Isabel Gallotti, no âmbito do direito civil e processual civil, o ordenamento jurídico brasileiro vem se consolidando na aplicação da teoria maior subjetivista. O entendimento jurisprudencial compreender, portanto, ser essencial a demonstração de dolo das pessoas naturais que estão por trás da sociedade, competindo ao requerente comprovar a intenção ilícita e fraudulenta de causar prejuízo a terceiros para que seja acolhido o incidente de desconsideração da personalidade jurídica.

Todavia, destaca-se que a teoria menor não é só conhecida como é aplicada na esfera do direito do consumidor (art. 28, § 5º, do CDC), bastando que o requerente demonstre o estado de insolvência do fornecedor ou o fato de a personalidade jurídica representar um obstáculo ao ressarcimento dos prejuízos causados para que o incidente seja provido.

No campo do direito civil, com o ônus da prova recaindo sobre o credor, torna-se essencial verificar os requisitos que estão sendo adotados para possibilitar a desconsideração da personalidade jurídica.

Assim, a 16ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), ao julgar o Agravo de instrumento nº 2157170-35.2022.8.26.0000, deferiu o pedido de desconsideração da personalidade jurídica para incluir outra empresa no polo passivo da demanda, sob o fundamento de que ambas são fundadas pelo mesmo sócios, atuam na mesma cidade, possuem o mesmo objeto social e desenvolvem mesma atividade econômica.

A decisão do TJSP está em conformidade com o entendimento adotado pelo Tribunal de Justiça do Estado Paraná (TJPR), que, no julgamento do Agravo de Instrumento nº 035510-53.2023.8.16.0000, reconheceu a existência de confusão patrimonial em casos em que as mesmas pessoas compõem a administração de empresas diferentes, porém com a utilização de uma única sede, com firmas e ramos destinados à exploração de atividades semelhantes

No que diz respeito a empresas que não fazem parte de grupo econômico, é possível encontrar algumas decisões dos tribunais pátrios deferindo o incidente de desconsideração em casos em que o exequente não logrou êxito na localização de bens, com indícios de encerramento irregular da empresa (TJ-MG – AI: 0817635-60.2019.8.13.0000; DJe: 24/10/2019). Nesses casos, foi reconhecida a aplicação da teoria menor no âmbito do Direito Civil, em hipóteses nas quais o requerente se limita a demonstrar apenas o estado de insolvência do executado.

O tema chegou ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) que, com o intuito de oferecer maior segurança e transparência na solução da questão pelas instâncias de origem e pelos órgãos fracionários, afetou os REsps 1.873.187/SP e 1.873.811/SP ao rito dos recursos repetitivos, sob o tema 1210.

A controvérsia diz respeito ao cabimento ou não da desconsideração da personalidade jurídica no caso de mera inexistência de bens penhoráveis e/ou eventual encerramento irregular das atividades da empresa. Os recursos ainda estão pendentes de julgamento e a tese firmada disciplinará os casos que versam sobre o tema.

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[1] PARGENDLER, Mariana. Comentário ao artigo 50 do Código Civil: A desconsideração da personalidade jurídica. In: MARTINS-COSTA, Judith; NITSCHKE, Guilherme Carneiro M. (Org.). Direito Privado na Lei da Liberdade Econômica: Comentários. Portugal: Grupo Almedina, 2022. p. 246

[2] STJ, AgInt no AREsp n. 2.392.853/SP, Relator: Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, j. 20/11/2023, DJe de 23/11/2023

[3] BUENO, Cassio Scarpinella. O Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica para Além da Desconsideração: Uma Homenagem ao Professor Fabio Ulhoa Coelho. p. 2

[4] STJ – EREsp: 1306553 SC 2013/0022044-4, Relator: Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, Data de Julgamento: 10/12/2014, S2 – SEGUNDA SEÇÃO, Data de Publicação: DJe 12/12/2014 RDDP vol. 144 p. 140 RSTJ vol. 236 p. 31

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