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A retomada do debate sobre a aplicação da taxa Selic às dívidas civis pelo Superior Tribunal de Justiça

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Por Giovana Novaes, Advogada do Núcleo Contencioso do Poletto & Possamai.

A utilização da taxa Selic como taxa legal de juros moratórios aplicável às dívidas de natureza civil tem sido tema de grande controvérsia no mundo jurídico desde a entrada em vigor do Código Civil de 2002. O dilema reside em saber se a taxa referenciada no artigo 406 do Código Civil é a de 1% ao mês, conforme dispõe o artigo 161, §1º do Código Tributário Nacional, sem prejuízo da incidência da correção monetária, ou se a taxa prevista é a Selic (que inclui tanto juros quanto correção monetária em sua composição).

A discussão foi retomada em outubro de 2021, quando a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu submeter o REsp nº 1.795.982/SP à Corte Especial para definição do tema (até o momento, sem julgamento). Neste caso, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo havia determinado o cálculo dos juros moratórios à taxa de 1% ao mês em razão do disposto no artigo 406 do Código Civil c/c o artigo 161, §1º do Código Tributário Nacional. No julgamento do Especial, o Ministro Relator Luis Felipe Salomão ratificou seu posicionamento pela manutenção da decisão do Tribunal de origem ao argumento de que a taxa Selic não se compatibilizaria com a taxa real aplicável ao direito privado.

O debate também ganhou visibilidade em 26 de outubro de 2021, quando do julgamento do REsp nº 1.081.189, também de relatoria do Ministro Luis Felipe Salomão. A Quarta Turma, por unanimidade, sobrestou o feito para aguardar o julgamento do REsp 1.795.982/SP pela Corte Especial.

O posicionamento do Ministro Salomão em ambos os recursos não é recente e está sintetizado no voto por ele proferido no EDcl no REsp nº 1.025.298/RS, da C. 2ª Seção, em que afirma que a Selic é taxa que “não necessariamente reflete, com perfeição, o somatório de juros moratórios e a real depreciação da moeda, a qual a correção monetária visa a recompor, notadamente pelos índices de inflação medida em determinado período”.

Em sentido semelhante já decidiu o Supremo Tribunal Federal no Tema 810 de Repercussão Geral que a “a correção monetária não é jamais prefixada, uma vez que a inflação é insuscetível de captação apriorística. A variação de preços na economia é sempre constatada ex post, mas nunca fixada ex ante, exceto em regimes ditatoriais em que há controle de preços e economia planificada[1]”, endossando o entendimento de que a Selic não necessariamente desempenha o papel de corrigir a moeda.

Ao julgar o caso acima, o relator Ministro Luiz Fux ponderou que a taxa Selic, em verdade, proporciona uma confusão entre institutos diversos e bem delimitados (remuneração e atualização de valores), não se podendo confundir com os juros de mora, uma vez que “a racionalidade dos institutos é distinta e embaralhá-los é ignorar os pilares da dogmática jurídica”.

Em realidade, o impasse a ser dirimido pelo Superior Tribunal de Justiça perpassa por dois pontos nebulosos.

O primeiro deles é definir qual o papel do artigo 161, §1º do Código Tributário Nacional em relação à disciplina do artigo 406 do Código Civil em meio a diversas normativas em matéria fazendária que adotam a Selic como taxa legal de juros de mora[2].

O debate é legítimo porque a lei de regência do Sistema Tributário Nacional, no que diz respeito ao pagamento de créditos tributários, é a Lei nº 5.172/1966 (Código Tributário), que prevê, como norma geral, a taxa de 1% (um por cento) ao mês como taxa legal de juros de mora (artigo 161, §1º do CTN).

Em que pese diversas leis esparsas tenham adotado a taxa Selic como taxa de juros de mora, tais normativas relacionam-se a créditos tributários específicos. Não houve derrogação do regime geral do Código Tributário, que permanece vigente e aplicável às controvérsias que não estejam reguladas por disposição legal específica.

A Selic, portanto, é exceção no regime tributário, ao passo que a taxa de juros de 1% é a regra geral, como restou bem definido no REsp nº 1.495.146/MG, julgado sob a temática dos recursos repetitivos (Tema 905).

Nesse contexto, se a exceção no regime Fazendário é a aplicação da Selic, revela-se, em princípio, incongruente que essa taxa seja utilizada como regra a pautar a taxa de juros de mora das dívidas civis.

O segundo ponto passível de controvérsia é que a Selic não se compatibiliza com a dogmática do Direito Civil (artigo 406, CC), que confere tratamento autônomo à atualização monetária e aos juros de mora como consequência natural do completo ressarcimento dos danos, conforme se infere dos artigos 389, 395 e 404 do Código Civil (só para citar alguns exemplos).

Já a chamada taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia – Selic –, instituída pela Resolução nº 1.124/1986 do Conselho Monetário Nacional, consiste no “principal instrumento de política monetária utilizada pelo Banco Central para controlar a inflação” e reflete o índice de juros apurado nas operações de empréstimos entre as instituições financeiras em um dia (operações compromissadas). De acordo com a sedimentada jurisprudência do STJ, a Selic engloba juros e correção monetária.[3]

Nesse contexto, nota-se que a taxa Selic, por definição, se mostra incompatível com o escopo do artigo 406 do Código Civil. Aqui, a opção do legislador foi a de regulamentar exclusivamente a taxa de juros moratórios, sem aludir à correção monetária. E nem poderia ser diferente, afinal, o próprio Código Civil trata desses institutos como autônomos e distintos, ao contrário do que pode vir a ocorrer na seara tributária em virtude da superveniência de diversas leis especiais estabelecendo a incidência da Selic.

Não bastasse, a própria definição do que vem a ser a taxa Selic denota sua natureza compensatória, e não moratória, já que reflete a remuneração dos investidores pela compra e venda dos títulos públicos. Ou seja, leva em consideração os juros praticados no ambiente especulativo, divergindo, portanto, da natureza punitiva dos juros moratórios a que alude o artigo 406 do Código Civil, claro ao referenciar em seu texto: “Quando os juros moratórios não forem convencionados (…)”.

O terceiro ponto a ser enfrentado pelo Superior Tribunal de Justiça no já citado REsp nº 1.795.982/SP diz respeito à in(compatibilidade) da Selic às dívidas de natureza civil que possuem termo inicial dos juros de mora e o termo inicial da correção monetária díspares.

Para aquelas decorrentes de responsabilidade civil extrajudicial o dilema reside no conflito entre as Súmulas 54[4] e 362[5] do STJ, que definem a contagem dos juros moratórios a partir da data do evento danoso, ao passo que a correção monetária ocorre desde a data do arbitramento do valor a ser pago como indenização a título de danos morais.

Espera-se, enfim, que o Superior Tribunal de Justiça sepulte a controvérsia também no que diz respeito à operacionalidade da Selic às hipóteses de responsabilidade civil contratual, de modo a coibir decisões contraditórias que, na tentativa de não incorrem em bis in idem, acabam por estabelecer regimes diferenciados de atualização do débito ao fixar a taxa Selic em conjunto com outro fator de correção a depender do termo inicial de fluência dos juros de mora.

[1] STF. RE 870947, Relator: LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 20/09/2017.

[2] Por exemplo: Lei n. 9.250/95, art. 39, § 4º, que trata da repetição ou compensação de tributos; a Lei n. 9.430/96, art. 61, § 3º; Lei n.10.522/2002, art. 30; Lei 8.891/1995, art. 84; Lei 9.065/1995, art. 13.

[3] Ilustrativamente: STJ, MS 17.511/DF, 1ª S., Rel.  Min. Napoleão Nunes Maia Filho, julg. 24.9.2014; AgInt nos EDcl no REsp 1.518.445/SP, 4ª T., Rel. Min. Raul Araújo, julg. 14.5.2019.

[4] Súmula n.º 54/STJ: “Os juros moratórios fluem a partir do evento danoso, em caso de responsabilidade extracontratual”.

[5] Súmula n.º 362/STJ: “A correção monetária do valor da indenização do dano moral incide desde a data do arbitramento”.

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