Conteúdo

Cláusula de retomada nas obras públicas: expectativas a partir do primeiro contrato no Paraná

Por

A cláusula de retomada (também conhecida como cláusula de step in right) ganhou maior notoriedade com o advento da Lei nº 14.133/2021, mas sua utilização já era uma possibilidade muito antes disso. 

A Circular SUSEP nº 232 entrou em vigor em 3 de junho de 2003, a fim de divulgar as informações mínimas que deveriam estar contidas nas apólices e nas condições gerais e especiais para os contratos de seguro-garantia. Ainda naquela época, previu que, nos casos de caracterização de sinistro, a seguradora poderia indenizar o segurado de duas formas: 1) pagando os prejuízos causados pela inadimplência do tomador; ou 2) “realizando, por meio de terceiros, o objeto do contrato principal, de forma a lhe dar continuidade e o concluir, sob a sua integral responsabilidade” (Cláusula 7.1, item I, das Condições Gerais apresentadas pela Circular).

A mesma previsão é observada na Circular SUSEP nº 477/2013 – a qual revogou a Circular SUSEP nº 232/03. A disposição de que a seguradora poderia realizar o objeto do contrato principal por meio de terceiros foi incluída na Cláusula 8.1 de suas Condições Gerais.

Contudo, no geral, a cláusula de retomada não foi um mecanismo amplamente utilizado no período citado. Dentre os motivos para o seu “esquecimento”, tem-se o fato de que a antiga lei de licitações (Lei nº 8.666/1993) apresentava um percentual de garantia significativamente baixo: até 10% do valor do contrato, sendo que as obras, serviços ou fornecimentos que não se enquadrassem em “grande vulto” estavam limitados a garantias de apenas 5% (artigo 56, §§2º e 3, Lei nº 8.666/1993). 

Executar o objeto contratual quando o limite máximo da garantia possui valor bastante inferior ao valor total do contrato se torna praticamente impossível, especialmente no período inicial da relação contratual. Assim, as seguradoras optavam por indenizar os segurados mediante pagamento em dinheiro, a segunda opção fornecida pela Susep (Superintendência de Seguros Privados).

A situação se altera significativamente com a promulgação da Lei nº 14.133/2021.

Isso porque o artigo 99 da atual lei de licitações dispõe que “nas contratações de obras e serviços de engenharia de grande vulto, poderá ser exigida a prestação de garantia, na modalidade seguro-garantia, com cláusula de retomada”, em percentual de 30% do valor inicial do contrato. 

A referência ao que significa a cláusula de retomada se encontra no artigo 102 da mesma lei, o qual dispõe que o edital da licitação poderá exigir a prestação de seguro-garantia com previsão de que, em caso de inadimplemento pelo contratado, a seguradora deverá “assumir a execução e concluir o objeto do contrato”. Para tanto, a seguradora assinará os contratos como interveniente anuente e terá livre acesso às instalações, acompanhará a execução do contrato e as auditorias, bem como poderá exigir esclarecimentos ao responsável técnico pela obra/fornecimento (inciso I do artigo 102).

Isto é, a Lei nº 14.133/2021 parece buscar uma possível solução para a problemática relatada acima com as Circulares da Susep: ao aumentar a porcentagem do seguro para 30% do valor do contrato, a opção de retomada pelas seguradoras passa a se tornar um atrativo, dependendo do estágio de execução do objeto contratual.

“Dependendo” porque, ainda que tenha aumentado a atratividade da cláusula de retomada, a Lei nº 14.133/2021 também apresenta a possibilidade de a seguradora escolher pela indenização em dinheiro. Nesse sentido, é o parágrafo único do artigo 102 da lei supracitada:

 

Parágrafo único. Na hipótese de inadimplemento do contratado, serão observadas as seguintes disposições:

I – caso a seguradora execute e conclua o objeto do contrato, estará isenta da obrigação de pagar a importância segurada indicada na apólice;

II – caso a seguradora não assuma a execução do contrato, pagará a integralidade da importância segurada indicada na apólice.

 

Tal possibilidade é, contudo, acompanhada de um ônus à seguradora: caso opte por não assumir a execução do contrato, é a importância segurada na íntegra que deve ser indenizada – e não apenas o valor total dos prejuízos, que pode ser inferior ao limite máximo da garantia.

Cabe destacar também que a utilização da cláusula de retomada é restrita a “obras e serviços de engenharia de grande vulto”, o que a Lei nº 14.133/2021 classifica como aqueles cujo valor estimado supera R$ 200 milhões – nos termos do artigo 6º, inciso XXII.

Realizado este breve panorama quanto às previsões legislativas no que concerne à cláusula de retomada, fato é que os contratos de obra pública demoraram a contar com a previsão em seus editais – a despeito do período transcorrido desde a promulgação da Lei nº 14.133/2021. 

Nesse sentido, o Estado do Mato Grosso foi pioneiro no lançamento de edital de licitação de obra pública com previsão de cláusula de retomada. A execução do asfaltamento de 50 km da rodovia MT-430 conta com esse papel mais ativo da seguradora previsto em edital e em contrato, graças à Lei Estadual nº 12.148, de junho de 2023, que classifica, no âmbito estadual do Mato Grosso, que serviços de “grande vulto” são aqueles que ultrapassam R$ 50 milhões.

Na sequência, o Paraná se tornou o segundo Estado a adotar a cláusula de retomada em edital para execução de obra pública, especificamente para restaurar e ampliar trecho da rodovia PR-151, entre Ponta Grossa e Palmeira. A obra é objeto do Contrato nº 114/2024, celebrado entre o Departamento de Estradas de Rodagem do Estado do Paraná e o Consórcio Palmeira, vencedor da licitação. 

Com valor de R$ 257,2 milhões – classificando-se, portanto, como obra de grande vulto -, o Contrato nº 114/2024 dispõe sobre a garantia em sua Cláusula XIV. Nela, ficou registrado que o Consórcio Palmeira apresentaria garantia, na modalidade seguro-garantia, em 30% do valor do Contrato (aproximadamente R$ 77 milhões), contando com a previsão da cláusula de retomada.

No tocante à assunção do objeto contratual pela seguradora, o parágrafo terceiro da Cláusula supra assim dispõe:

 

A seguradora, em caso de inadimplemento pelo contratado, fica obrigada a assumir a execução e concluir o objeto do contrato, hipótese em que:

  1. a) a seguradora deverá firmar o contrato, inclusive os aditivos, como interveniente anuente e poderá:

a.1) ter livre acesso às instalações em que for executado o contrato principal;

a.2) acompanhar a execução do contrato principal;

a.3) ter acesso a auditoria técnica e contábil; e,

a.4) requerer esclarecimentos ao responsável técnico pela obra ou pelo fornecimento;

  1. b) a emissão de empenho em nome da seguradora, ou a quem ela indicar para a conclusão do contrato, será autorizada desde que demonstrada sua regularidade fiscal;
  2. c) a seguradora poderá subcontratar a conclusão do contrato, total ou parcialmente;
  3. d) na hipótese de inadimplemento do contratado, serão observadas as seguintes disposições:

d.1) caso a seguradora execute e conclua o objeto do contrato, estará isenta da obrigação de pagar a importância segurada indicada na apólice; e,

d.2) caso a seguradora não assuma a execução do contrato, pagará a integralidade da importância segurada indicada na apólice.

 

De forma similar ao que prevê a Lei nº 14.133/2021, o Contrato nº 114/2024 apresenta incentivo para a seguradora utilizar a cláusula de retomada: na hipótese de conclusão do objeto do contrato, a seguradora fica isenta de pagar o total da importância segurada indicada na apólice – diferentemente do que se optar pela indenização em dinheiro, cujo valor não estará relacionado ao prejuízo em si, mas ao limite segurado.

Isto é, se a retomada da obra custar menos de R$ 77 milhões, a opção torna-se atrativa. Por outro lado, o pagamento implica no dispêndio total da importância segurada, independentemente se os prejuízos forem inferiores.

A previsão aparenta ser uma contradição àquilo que fixa o princípio indenitário, disposto, dentre outros, no artigo 944 do Código Civil: a indenização, no geral, se mede pela extensão do dano, e não pelo valor da importância segurada previsto na apólice. Prever que a indenização em dinheiro será integral, a despeito da extensão do prejuízo, se torna de fato um incentivo para a retomada da execução da obra pelo segurado.

E por que a retomada é, muitas vezes, a opção mais atraente ao Poder Público e, especialmente, à sociedade destinatária do objeto contratual? Primeiro, porque ela garante que os recursos da seguradora serão destinados, integralmente, à finalização da obra/serviço – não sendo dirigidos a possíveis outros fins, como pagamento de multas contratuais. E segundo, porque conter a cláusula de retomada significa que a seguradora não assume apenas o dever de pagar; ela se torna a responsável por concluir o objeto do contrato, de forma eficiente e nos termos dispostos em edital.

Assim, a cláusula de retomada se torna uma importante ferramenta, especialmente diante dos riscos contratuais assumidos pelo contratado, previstos na respectiva matriz de alocação.

No caso do Contrato nº 114/2024, houve a divisão dos riscos em dez tipos distintos: desapropriação, interferências, ajuste de escopo, terraplenagem, pavimentação, sinalização, meio ambiente e paisagismo, canteiro de obras, administração local e central e, por fim, execução de obra. Desses, quatro (desapropriação, interferências, pavimentação e meio ambiente e paisagismo) foram subdivididos em dois riscos distintos. Assim, a matriz do Contrato nº 114/2024 conta com a divisão de quatorze categorias distintas de riscos a serem alocados. 

Dentre essas 14 categorias distintas, seis foram alocadas exclusivamente à Administração, com a adição de uma última (risco de pavimentação, no subtópico transporte de material) que é de responsabilidade da Administração apenas quando há superação dos limites de responsabilidade da contratada.

Isto é dizer: a grande parte dos riscos (oito dentre 14) são da contratada. Logo, a possibilidade de inadimplemento em alguma das áreas contratuais aumenta, se tornando importante à eficiência do contrato que a seguradora seja esta âncora, tanto financeira quanto executora do objeto contratual.

Em relação ao Contrato nº 114/2024, ainda não há como prever como as partes se comportarão em relação às previsões contratuais. Nem sequer há como saber se haverá inadimplemento que demande a utilização da cláusula de retomada (espera-se que não). A vigência contratual se iniciou em 30 de outubro de 2024, com previsão de encerrar em 16 de outubro de 2027 – cujo prazo pode ser prorrogado nos termos da Cláusula X do instrumento contratual.

Além disso, o cenário de utilização da cláusula de retomada ainda parece muito incerto: a atividade securitária, como as demais atividades da iniciativa privada, possui como uma de suas prioridades a lucratividade. As seguradoras provavelmente não optarão por retomar projetos cujo valor (e consequentemente o risco) vá além do que foi assumido, especialmente considerando os riscos predeterminados. 

Para a efetiva utilização da cláusula de retomada – cuja previsão tende a ser cada vez mais presente nas obras públicas do país, a partir da Lei nº 14.133/2021 -, é preciso um trabalho cada vez mais próximo entre a Administração e as seguradoras, para que as apólices de seguro-garantia reflitam, de fato, os projetos técnicos de cada edital de licitação e os respectivos riscos alocados aos contratados.

Especialmente porque as apólices possuem o limitador de 30% do valor do contrato, de forma que a retomada apenas parece fazer sentido frente a inadimplementos que aconteçam próximo à finalização do objeto contratual, a partir de uma prévia subscrição eficiente dos riscos assumidos.

Compartilhe nas redes sociais

Newsletter

Assine e receba nossas atualizações e conteúdos ricos exclusivos