Não é novidade que o Brasil não é o país mais eficiente em matéria de obras públicas. Atualmente são mais de cinco mil obras paralisadas no território nacional, o que representa prejuízo de mais de R$ 15 bilhões de investimentos em variados setores, englobando desde ferrovias a obras de saneamento básico, passando por escolas e demais prédios públicos[1]. A crise econômica não é o único motivo desta paralisia: há falhas crônicas na elaboração dos projetos, falta de planejamento, burocracia em excesso, entraves ambientais e demais conflitos políticos que levam ao cenário desolador. Em meio a isso, tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 6.814/2017[2]. Este PL teve origem no Senado Federal, onde tramitou durante três anos sob o nº 559/2013 até ser remetido à Câmara dos Deputados em fevereiro deste ano. O projeto pretende estabelecer novas diretrizes para licitações e contratos da Administração Pública, revogando a Lei nº 8.666/93 e demais dispositivos conexos. Dentre os temas abrangidos pela reforma está o tratamento conferido ao seguro-garantia. Atualmente regulamentado pela Circular Susep nº 477/2013, o seguro-garantia é o contrato de seguro que “garante o fiel cumprimento das obrigações assumidas pelo tomador perante o segurado”[3] e é visto como uma solução possível para diminuição do número de obras paradas no país. Isso porque quando caracterizado o sinistro cabe à seguradora cumprir a obrigação descrita na apólice até o limite máximo de garantia mediante a realização, por meio de terceiros, do objeto do contrato segurado sob sua responsabilidade ou indenização com pagamento em dinheiro dos prejuízos e/ou multas decorrentes da inadimplência do tomador nos termos do item 8.1 da referida Circular[4]. Na prática, o seguro-garantia já é amplamente utilizado, porém como os percentuais atuais de importância segurada são baixos – variam de 5 a 10% do valor contratado, nos termos dos §§ 2º e 3º do art. 56 da Lei nº 8.666/93 – o sistema favorece a indenização em dinheiro, tendo em vista a maior praticidade e a inviabilidade de retomada da obra e do serviço contratado com os valores segurados. O PL nº 6.814/2017 pretende mudar essa realidade ao elevar a importância segurada para o montante de 20% a 30% do valor contratado (vide art. 89, §§ 3º e 4º) e incentivar a retomada da obra ou serviço como solução prioritária (de acordo com o §7º do mesmo artigo). Também é previsto que haja definição prévia da matriz de riscos do contrato, nos termos do art. 90 do PL, sendo ainda impostos importantes deveres às seguradoras, como o de fiscalização da execução contratual e realização de auditoria técnica e contábil (conforme disposto pelas alíneas “b” e “c” do inciso III do §7º do art. 89). Evidente, portanto, que o projeto almeja a transferência de responsabilidades da Administração para as seguradoras. Em outras palavras, diante da parca estrutura da Administração Pública para gerir seus contratos, pretende-se transferir esta obrigação às seguradoras, em nome da eficiência, de modo que, se aprovadas as mudanças previstas pelo projeto de lei, deverão as instituições seguradoras adaptar-se à nova realidade, o que deve ocorrer por meio da elevação do valor do prêmio, maior rigor na subscrição de riscos e exigência de contragarantias sólidas por parte dos tomadores de obras públicas.[5] Quanto ao valor do prêmio, estudo realizado no âmbito do TCU aponta que o prêmio pago pelo seguro-garantia de obras públicas tende a variar entre 0,45% e 4% ao ano sobre o valor da importância segurada, a depender da classificação obtida pela empresa junto à instituição seguradora, o que representa entre 0,0225% e 0,2% do valor do contrato para garantias equivalentes a 5% desse valor e entre 0,045% a 0,4% para as garantias que atinjam 10% do valor contratado.[6] Com o aumento da importância a ser segurada, além do incremento substancial de responsabilidades das seguradoras, esses percentuais seguramente serão ampliados, levando ao repasse dos custos à Administração (usualmente as empresas contratadas lançam essa despesa no seu BDI na planilha de composição de preços). Já a exigência de contragarantias efetivas pode prejudicar as pequenas empresas, na contramão da ordem econômica constitucional que prevê tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte nacionais, nos termos do art. 170, IX da Constituição. Transferir às seguradoras as obrigações de fiscalizar, auditar e concluir obras paradas terá seu preço, resta verificar se as obras serão concluídas em benefício da população e se os ganhos de eficiência o compensarão. Ainda é tempo para o debate.
- [1]https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,brasil-tem-cerca-de-5-mil-obras-paradas,1887811
- [2] https://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2122766
- [3] https://www.susep.gov.br/menu/atos-normativos/condicoes-contratuais-padronizadas-1
- [4] 8.1. Caracterizado o sinistro, a seguradora cumprirá a obrigação descrita na apólice, até o limite máximo de garantia da mesma, segundo uma das formas abaixo, conforme for acordado entre as partes:
- I – realizando, por meio de terceiros, o objeto do contrato principal, de forma a lhe dar continuidade, sob a sua integral responsabilidade; e/ou
- II – indenizando, mediante pagamento em dinheiro, os prejuízos e/ou multas causados pela inadimplência do tomador, cobertos pela apólice.
- [5] https://www.apts.org.br/single-post/2017/07/12/Impactos-do-novo-modelo-de-seguro-garantia
- [6] Acórdão TC 2622/2013, Processo 036.076/2011-2, Plenário Rel. Marcos Bemquerer, 25 set. 2013. Disponível em: https://contas.tcu.gov.br/pesquisaJurisprudencia/#/detalhamento/11/estudo%2520bdi%2520composi%25C3%25
A7%25C3%25A3o%2520valores%2520referenciais%25202013/RELATOR%253A%2522MARCOS%2520BEMQUERE
R%2522/DTRELEVANCIA%2520desc%252C%2520NUMACORDAOINT%2520desc/false/15/false - [i]Acadêmica do 5º ano da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná – FD-UFPR. Trainee integrante do Núcleo de Contratos da Poletto & Possamai Sociedade de Advogados.