A ampliação da dimensão funcional da responsabilidade civil é assunto recorrente na doutrina e na jurisprudência. Há insuficiências para o alcance da efetiva tutela de direitos que a função exclusivamente reparatória não é capaz de superar [1], sobretudo diante dos danos gerados pela violação aos direitos fundamentais, cujos interesses jurídicos dificilmente são recompostos ao estado anterior ao dano [2].
Busca-se um sistema renovado da responsabilidade civil que, para além da reparação de danos, configure-se para reagir à propagação das diferentes formas de ilícito [3] com respostas cada vez mais arrojadas. Nesse espaço, projetam-se novas funções ao instituto, a exemplo da função preventiva.
No contexto da multifuncionalidade da responsabilidade civil, um dos desafios atuais do instituto é aperfeiçoar instrumentos para desestimular comportamentos antijurídicos, assim como evitar ou mitigar os danos. Como parte dessa construção, está o fortalecimento da noção de prevenção contra ilícitos e danos [4].
Sem se olvidar do espaço ocupado pela tradicional função reparatória, a responsabilidade civil preventiva consiste no redimensionamento do instituto, com o desígnio de proteger a integralidade dos direitos, prevenindo tanto a violação desses direitos, quanto a eventual ocorrência de danos[5].
Função preventiva da responsabilidade civil
Nesse caminho, o anteprojeto de revisão e atualização do Código Civil brasileiro (Lei nº 10.406/2002) trilhou seus passos e consolidou, na norma proposta, a função preventiva da responsabilidade civil, em compasso ao que tem sido desenvolvido na doutrina e na jurisprudência. Apresentado ao Senado em abril de 2024, o anteprojeto de reforma do Código Civil propõe a criação do artigo 927-A [6], inaugurando no Código Civil uma estrutura normativa para a tutela preventiva contra ilícitos e danos.
De início, o caput do artigo 927-A do anteprojeto contempla um expresso dever de prevenção, ao dispor que “todo aquele que crie situação de risco, ou seja responsável por conter os danos que dela advenham, obriga-se a tomar as providências para evitá-los”. Trata-se da regulação da “função preventiva pelo viés substantivo”[7], em que se impõe medidas de evitação dos danos considerados previsíveis, de mitigação de seu alcance e de não agravamento do dano, na hipótese de já ter se realizado (artigo 927-A, parágrafo 1º, do anteprojeto).
O direito ao reembolso das despesas preventivas também é contemplado no anteprojeto. Quem, em potencial estado de necessidade e que não tenha causado o risco, efetuar despesas para evitar ou atenuar suas consequências, desde que sejam urgentes e necessárias, terá o direito de ser reembolsado (artigo 927-A, parágrafo 2º, do Anteprojeto). Como se observa, a assunção de despesas preventivas e seu correspondente reembolso dependem do atendimento a determinados critérios, a exemplo da constatação do potencial estado de necessidade e de que as despesas sejam urgentes e necessárias. Ainda, o desembolso desses gastos deve ter sido realizado da forma menos gravosa para o patrimônio do responsável.
Na sequência, o anteprojeto constitui um diálogo com as disposições do Código de Processo Civil relacionadas à tutela inibitória e de remoção do ilícito. São previstas seis finalidades que podem ser obtidas pela denominada tutela preventiva do ilícito:
- a) inibir a prática do ilícito
- b) sua reiteração
- c) sua continuidade
- d) seu agravamento; além de, nos casos em que o ilícito já tenha ocorrido
- e) a remoção de suas consequências e
- f) a indenização atinente (artigo 927-A, parágrafo 3º, do Anteprojeto)
Para a análise do tema, rememora-se o artigo 497, parágrafo único, do CPC [8], que possibilita o pedido de uma tutela específica destinada à inibição da prática, da reiteração ou da continuação de um ilícito. Trata-se da “tutela inibitória processual”, voltada a atuar contra a ilicitude, não sendo uma técnica protetiva imediata e direta contra o dano [9].
O dano não é elemento integrante do ato ilícito, mas apenas eventual consequência deste. Assim, as pretensões preventivas não se restringem ao dano, podendo também se dirigir a um ato contrário ao direito. Com essa lógica, nota-se que a tutela inibitória busca eliminar o ilícito, sendo descabida qualquer aferição de culpa, dolo, bem como do dano, os quais não integram a sua causa de pedir[10].
Nesse sentido, a responsabilidade civil preventiva, ao atuar por meio dos instrumentos inibitórios, cumpre o “dever jurídico de diligência e proteção”, com o propósito de que os indivíduos, em suas interações, não infrinjam direitos alheios ou causem danos a eles [11]. O mencionado dispositivo do Anteprojeto se dedica a aperfeiçoar a tutela inibitória prevista no CPC e possibilitar ao direito substantivo que indique formas de tutela, sejam elas reparatórias ou inibitórias [12].
Tutela preventiva dos direitos
Com o objetivo de realizar a tutela preventiva dos direitos, o anteprojeto prevê, ainda, a admissão de todas as espécies de ações e de medidas processuais que garantam a proteção adequada desses direitos, ao passo em que se deve respeitar os critérios da menor restrição possível e os meios mais adequados para assegurar a sua eficácia (artigo 927-A, parágrafo 4º, do anteprojeto).
Segundo a justificação que acompanha o relatório do Anteprojeto, as propostas apresentadas se pautam na “necessidade de adequar a responsabilidade civil aos mais avançados ordenamentos, para que seja compreendida como um sistema de gestão de riscos e de restauração de um equilíbrio injustamente rompido”, alinhada à contenção de danos e de comportamento ilícitos. Com esse escopo, o relatório sustenta a “introdução das funções preventiva (artigo 927-A) e pedagógica (§ 3º, artigo 944-A) com seguros parâmetros de aplicação para a moderação de poderes judiciais, contrabalançados por uma função promocional aos agentes econômicos que investirem em governança e accountability”[13].
Em sua codificação atual, o direito civil brasileiro carece de uma estruturação normativa para a tutela preventiva contra ilícitos e danos. Embora essa tutela possa ser obtida por meio dos instrumentos processuais existentes e de algumas normas de direito material, entende-se que a criação de uma norma que estabeleça, especificamente, a responsabilidade civil preventiva no Código Civil proporcionaria maior segurança jurídica, em virtude da primazia da lei, e atenderia aos anseios atuais que orientam o instituto a um sistema multifuncional.
[1] FERREIRA, Keila Pacheco. Princípio da Reparação Integral: feição clássica, insuficiências e expansão funcional da responsabilidade civil. In: PIRES, Fernanda Ivo (org.); Guerra, Alexandre et al. (coord.). Da estrutura à função da responsabilidade civil: uma homenagem do Instituto Brasileiro de Estudos em Responsabilidade Civil (IBERC) ao professor Renan Lotufo. Indaiatuba: Foco, 2021.
[2] CORTIANO JUNIOR, Eroulths; COSTA, Vivian Carla da. Multifuncionalidade da responsabilidade civil como proteção dos direitos fundamentais. In: MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo; PIANOVSKI RUZYK, Carlos Eduardo; ROSENVALD, Nelson. Responsabilidade Civil e a Luta pelos Direitos Fundamentais. Indaiatuba: Foco, 2023, p. 149.
[3] ROSENVALD, Nelson. Responsabilidade civil: compensar, punir e restituir. Revista IBERC, v. 2, n. 2, 2019, p. 7. Disponível em: https://revistaiberc.emnuvens.com.br/iberc/article/view/48. Acesso em: 20 fev. 2024.
§ 4º Para a tutela preventiva dos direitos são admissíveis todas as espécies de ações e de medidas processuais capazes de propiciar a sua adequada e efetiva proteção, observando-se os critérios da menor restrição possível e os meios mais adequados para garantir a sua eficácia” (BRASIL. Senado Federal. Anteprojeto de Lei para revisão e atualização da Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002, que institui o Código Civil. Dispõe sobre a atualização da Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), e da legislação correlata. Brasília: Senado Federal, 2024. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento/download/68cc5c01-1f3e-491a-836a-7f376cfb95da. Acesso em: 19 abr. 2024).
[7] BRASIL. Senado Federal. Parecer n. 1 – Subcomissão de responsabilidade civil e enriquecimento sem causa da Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil (CJCODCIVIL), criada pelo Ato do Presidente do Senado (ATS) n. 11, de 2023, p. 18. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento/download/b02f40e3-8cb9-4c02-8a13-98bdd1a05d93. Acesso em: 19 abr. 2024.
[8] “Art. 497. Na ação que tenha por objeto a prestação de fazer ou de não fazer, o juiz, se procedente o pedido, concederá a tutela específica ou determinará providências que assegurem a obtenção de tutela pelo resultado prático equivalente. Parágrafo único. Para a concessão da tutela específica destinada a inibir a prática, a reiteração ou a continuação de um ilícito, ou a sua remoção, é irrelevante a demonstração da ocorrência de dano ou da existência de culpa ou dolo” (BRASIL. Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Diário Oficial [da] União, Brasília, 17 mar 2015).
[9] VENTURI, Thaís Goveia Pascoaloto. Responsabilidade Civil Preventiva: A Proteção contra a Violação dos Direitos e a Tutela Inibitória Material. São Paulo: Malheiros Editores, 2014, p. 271-274.
[10] MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela inibitória e a tutela de remoção do ilícito. 8. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022, p. 21-25.
[11] VIEIRA, Andrey Bruno Cavalcante; EHRHARDT JUNIOR, Marcos. O direito de danos e a função preventiva: desafios de sua efetivação a partir da tutela inibitória em casos de colisão de direitos fundamentais. Revista IBERC, v. 2, n. 2, mai.-ago.2019, p 17. Disponível em: https://revistaiberc.responsabilidadecivil.org/iberc/article/view/56/50. Acesso em: 20 ago. 2023.
[12] BRASIL. Senado Federal. Parecer n. 1 – Subcomissão de responsabilidade civil e enriquecimento sem causa da Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil (CJCODCIVIL), criada pelo Ato do Presidente do Senado (ATS) n. 11, de 2023, p. 18. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento/download/b02f40e3-8cb9-4c02-8a13-98bdd1a05d93. Acesso em: 19 abr. 2024.
[13] BRASIL. Senado Federal. Anteprojeto de Lei para revisão e atualização da Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002, que institui o Código Civil. Dispõe sobre a atualização da Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), e da legislação correlata, p. 292. Brasília: Senado Federal, 2024. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento/download/68cc5c01-1f3e-491a-836a-7f376cfb95da. Acesso em: 19 abr. 2024.
Publicado originalmente no Conjur.