
Questão relevante no Direito dos Seguros, mas ainda não resolvida, é definir o prazo prescricional para pleitear em juízo a indenização securitária quando o segurado é um ente da Fazenda Pública — pessoas políticas, autarquias e fundações de direito público. A jurisprudência se divide entre duas respostas [1].
A primeira aplica o prazo geral de um ano do Código Civil para pretensões do “segurado em face do segurador” (artigo 206, § 1º, II, “b”), assumindo que o seguro — mesmo da Administração — é um contrato de Direito Privado. A segunda considera que o prazo é de cinco anos, numa leitura extensiva do artigo 1º do velho Decreto 20.910/32, que regula a prescrição a favor da Fazenda, mas não contra ela [2].
Em julgamento de junho de 2024, proferido no AgInt no REsp 2.105.293-SC, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) endossou essa segunda linha interpretativa [3]. Seu fundamento-chave invoca o “princípio da isonomia”: se as pretensões contra a Fazenda prescrevem em cinco anos, como diz o Decreto, logo, automaticamente as pretensões dela também deveriam prescrever em igual período.
O uso do “princípio da isonomia” para inverter o prazo prescricional do Decreto 20.910/32 em favor do Estado não é novo: ele consta na ementa de vários julgados das Turmas de Direito Público do STJ e os tribunais locais o citam frequentemente.
Este texto propõe o seguinte contraponto: a tese da isonomia, da forma como vem sendo repetida na jurisprudência — inclusive do STJ —, é anacrônica e merece ser superada. Essa conclusão decorre da própria lógica interna dos precedentes do STJ que inauguraram o argumento.
Precedentes originais do STJ buscam reduzir prazo prescricional da Fazenda, e não aumentar
Os primeiros dois julgados em que o STJ usou a isonomia de maneira mais clara para tratar de prescrição são o REsp 380.006-RS [4] e o REsp 623.023-RJ [5], ambos de 2005. Veja-se: os casos concretos tratavam de sanções administrativas. No primeiro, o Banco Central cobrava multa por infração cambial depois de dez anos do ilícito. No segundo, o Estado do Rio de Janeiro exigia de um particular multa administrativa por ofensa a normas protetivas do meio ambiente, invocando em seu favor o prazo prescricional de vinte anos.
É importante contextualizar os casos. À época dos fatos, vigorava o Código Civil de 1916. Seu texto original definia prazos prescricionais que hoje seriam considerados longuíssimos: 30 anos para as chamadas “ações reais” e 20 para as “ações pessoais”; após a Lei 2.437/55, 20 para as reais e 10 para as pessoais [6].
Quando o governo provisório de Getúlio Vargas editou o Decreto 20.910/32, usando de competência legislativa [7], a norma privilegiava a Fazenda. As pessoas privadas dispunham de 30 ou 20 anos para demandarem umas às outras — depois 20 ou 10. Já para exigir judicialmente seus direitos em face do Estado, o prazo seria de apenas cinco (diz-se “apenas” naquele momento histórico).
Mais: não havia no momento dos fatos nenhuma lei específica de Direito Público com prazo para a Administração exercer pretensões punitivas. O STJ viu aí uma lacuna normativa a ser suprida.
Nessas circunstâncias, o STJ raciocinou a partir de duas premissas cruciais:
- Se os particulares tinham só cinco anos para demandar a Administração, não poderia ela — a Administração — dar a si mesma prazos muito maiores para satisfazer suas pretensões punitivas em face dos particulares com base no Código Civil de 1916 (20 ou 10 anos).
- Como as relações jurídicas envolviam típicos atos de império — a aplicação de sanções — era inadequado recorrer à lei civil por analogia.
A saída argumentativa do STJ foi fazer uma espécie de filtragem principiológica do Decreto 20.910/32. No texto em que se lê “prescrição da dívida passiva” da Fazenda Pública, o princípio da isonomia serviu de lente para ler também “prescrição das posições ativas da Fazenda” — extraindo dele outra norma.
Note-se bem: nos dois precedentes originários do STJ, o valor jurídico da igualdade serviu para proteger o cidadão contra o poder estatal, garantindo prazo razoável para se sujeitar a punições [8].
Aplicação por analogia do prazo de cinco anos perdeu sua razão de ser
Se esse raciocínio se sustentava ao tempo dos dois julgados comentados aqui, hoje ele perdeu sua razão de ser. Pretensões punitivas do Estado, que antes não tinham prazo fixado em lei, receberam tratamento específico com a Lei 9.873/99, passando a ser textualmente de cinco anos (artigo 1º).
A lacuna normativa — que motivou todo o debate em torno da isonomia no STJ em primeiro lugar — foi suprida por via legislativa. O intérprete não precisa mais se valer de interpretação extensiva do Decreto 20.910/32 para concluir que pretensões punitivas do Estado prescrevem em cinco anos.
O que dizer, então, das relações de Direito Privado da Administração, isto é, daquelas sem exercício de poder estatal nem desigualdade jurídica entre as partes? A rigor, para elas nunca houve lacuna no sistema: contratos privados da Administração — e o seguro é um deles [9] — foram e continuam sendo regidos pelas normas gerais da lei civil.
O Código Civil de 2002 abandonou a diferença entre “ações reais e pessoais” da lei anterior para reduzir os prazos prescricionais radicalmente: o prazo geral, mais longo, agora é de dez anos (artigo 205); o prazo específico para pretensões securitárias é de um ano (artigo 206, § 1º, II, “b”) [10].
A nova Lei do Contrato de Seguro — que entrará em vigor em dezembro — manteve o prazo ânuo (artigo 126, II, Lei 15.040/2024).
Quando o STJ igualou os prazos prescricionais a favor e contra a Fazenda no Direito Público, o desconforto era com a seguinte contradição: o Estado demandava os particulares nos prazos longos da lei civil então vigente, mas se defendia com o prazo curto de um decreto herdado de período autoritário.
O Código de 2002, que diminuiu quase todos os prazos prescricionais das relações privadas, não mais coloca esse problema de justiça do sistema legal.
Entender a história é importante pelo seguinte: a raiz do entendimento do STJ se perdeu. O que de início era argumento principiológico para suprir uma lacuna normativa se transformou, nos últimos vinte anos, em frase avulsa repetida nas ementas de sucessivos julgados. É como se ela fosse uma regra geral e abstrata e não mais uma construção jurisprudencial, necessariamente atrelada ao contexto fático e normativo dos casos concretos que deram suporte aos precedentes.
Os julgados recentes do STJ aludem ao “princípio da isonomia” de passagem e referem em seguida a “precedentes”, mas sem recuperar a ideia-força original dos acórdãos, explicada acima.
Sintomático disso é o fato de o acórdão no AgInt no REsp 2.105.293-SC, tratando da prescrição num contrato de seguro — matéria de Direito Privado — citar dois julgados sobre relações jurídicas de Direito Público: um sobre direito de regresso da Administração contra servidor e outro sobre ressarcimento ao SUS contra operadora de plano de saúde [11].
Conclusão
A provocação deste texto se resume assim: a isonomia que no começo serviu para proteger as pessoas frente ao Estado em relações de Direito Público tem servido para conservar privilégio da Administração em negócios de Direito Privado, extrapolando os limites semânticos do texto do Decreto 20.910/32 em detrimento do Código Civil.
Enquanto todos os brasileiros — desde o consumidor pessoa física dos seguros de varejo até a grande empresa lidando com riscos complexos — têm um ano para exercerem suas pretensões, a Fazenda mantém a benesse de dispor do quíntuplo do tempo. A pretexto de igualar, a jurisprudência desiguala o Estado e os particulares em suas situações jurídicas ativas nos contratos de seguro.
[1] A jurisprudência do TJ-SP ilustra bem a divergência. Aplicando o prazo de um ano: Apelação n.º 1001805-10.2020.8.26.0506, 7ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Fernando Reverendo Vidal Akauoui, j. 26.10.2023. Aplicando o prazo de cinco anos: Apelação n.º 1000912-83.2021.8.26.0053, 10ª Câmara de Direito Público, Rel. Des. Antonio Carlos Villen, j. 25.03.2024.
[2] Diz o art. 1º do Decreto 20.910/32 textualmente: “As dívidas passivas da União, dos Estados e dos Municípios, bem assim todo e qualquer direito ou ação contra a Fazenda federal, estadual ou municipal, seja qual for a sua natureza, prescrevem em cinco anos contados da data do ato ou fato do qual se originarem.”
[3] Segunda Turma, Rel. Min. Herman Benjamin, DJe 28.06.2024.
[4] Primeira Seção, Rel. Min. Francisco Peçanha Martins, DJe 07.03.2005.
[5] Terceira Turma, Rel.ª Min.ª Eliana Calmon, DJe 14.11.2005.
[6] “Art. 177. As ações pessoais prescrevem, ordinariamente, em vinte anos, as reais em dez, entre presentes e entre ausentes, em quinze, contados da data em que poderiam ter sido propostas.”
[7] Lembre-se que vigorava no Brasil uma ditadura em que o Executivo cumulava funções legislativas, nos termos do art. 1º do Decreto n.º 19.393/1930: “O Governo Provisório exercerá discricionariamente, em toda sua plenitude, as funções e atribuições, não só do Poder Executivo, como também do Poder Legislativo, até que, eleita a Assembleia Constituinte, estabeleça esta a reorganização constitucional do país.”
[8] A seguinte passagem do voto da Ministra Eliana Calmon no REsp 623.023-RJ sintetiza bem essa ideia: “Penso então que, na ausência de definição legal específica, o prazo prescricional para a cobrança da multa, crédito de natureza administrativa, deve ser fixado em cinco anos, não podendo a União, o Estado ou o Município gozar de tratamento diferenciado em relação ao administrado, porquanto não se verifica, nesse entendimento, risco de prejuízo ao interesse público.”
[9] A Lei 8.666/93 já se referia ao seguro como um dos contratos “regidos, predominantemente, por norma de direito privado” (art. 62, § 3º, I). Embora não conste artigo equivalente na Lei 14.133/2021, os “contratos de direito privado da Administração” são conceito eminentemente doutrinário a serem verificados pelo intérprete nos casos concretos. No campo amplíssimo das relações consensuais com as pessoas privadas, Fernando Dias Menezes de Almeida identifica o seguro dentre os chamados “módulos convencionais instrumentais” da Administração Pública (ALMEIDA, Fernando Dias Menezes. Contrato Administrativo. São Paulo: Quartier Latin, 2012. p. 289).
[10] Sobre a lógica econômica do prazo de um ano e seu efeito nas provisões das seguradoras: BORG, Rafael Leonardo: Decisão do STJ pode dar fim a controvérsia antiga envolvendo o prazo prescricional no seguro-garantia. Disponível aqui.
[11] Respectivamente: REsp 1.318.938-MG, Segunda Turma, Rel. Min. Og Fernandes, DJe 29.11.2019; AgRg no AREsp 850.760-RS, Segunda Turma, Rel. Min. Humberto Martins, DJe 15.04.2016.