Novos desafios sucessórios surgem diariamente no âmbito das famílias brasileiras. Nesse contexto, o ordenamento jurídico oferece mecanismos que possibilitam antever e planejar a transmissão de bens aos sucessores. O propósito é assegurar a autonomia da pessoa autora da herança, bem como trazer segurança jurídica aos envolvidos e prevenir potenciais litígios1.
Esse é o cerne da técnica jurídica denominada de planejamento sucessório. Trata-se do “conjunto de atos e negócios jurídicos efetuados por pessoas que mantêm entre si alguma relação jurídica familiar ou sucessória, com o intuito de idealizar a divisão do patrimônio de alguém, evitando conflitos desnecessários e procurando concretizar a última vontade da pessoa cujos bens formam o seu objeto.”,2 conforme ensinam Giselda Hironaka e Flávio Tartuce.
O planejamento sucessório pode ser concretizado por diversos instrumentos jurídicos. Os mecanismos tradicionais consistem na escolha do regime de bens no casamento ou na união estável; realização de atos de disposição em vida, como as doações; preparação de testamentos; e a realização de partilha em vida. Já os mecanismos novos são formados pela holding familiar e o trust3.
Cada instrumento de planejamento sucessório possui limites e possibilidades distintos. Neste artigo, apresentam-se algumas notas objetivas sobre o testamento e decisões recentes do Superior Tribunal de Justiça (STJ) acerca do tema.
A sucessão testamentária está prevista no Código Civil a partir do seu artigo 1.857 (Lei n. 10.406/2002). O testamento concerne ao “negócio jurídico que regula a sucessão de uma pessoa para o momento posterior a sua morte.”4. Trata-se de ato personalíssimo do testador, que pode ser alterado a qualquer tempo (art. 1.858). Entre as formas, estão o testamento público, cerrado ou particular (art. 1.862), além das formas especiais, estabelecidas no artigo 1.886 do Código Civil.
Enquanto limite, o testamento deve respeitar a reserva de metade do patrimônio aos herdeiros necessários (legítima). O artigo 1.846 do Código Civil dispõe que: “Pertence aos herdeiros necessários, de pleno direito, a metade dos bens da herança, constituindo a legítima.”. Significa dizer que o autor da herança só poderá dispor livremente de metade do seu patrimônio, de modo que a outra metade deve ser reservada aos herdeiros necessários.
Quanto às possibilidades do testamento, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que o testamento pode tratar de todo o patrimônio, desde que seja respeitada a destinação de, ao menos, metade do patrimônio para os herdeiros necessários (legítima)5. Com efeito, haveria um contraste com a literalidade do art. 1.857, §1º do Código Civil, que estabelece que: “A legítima dos herdeiros necessários não poderá ser incluída no testamento.”.
Entretanto, no entendimento da Terceira Turma do STJ, os dispositivos do Código Civil devem ser interpretados de forma conjunta, os quais permitem ao autor da herança planejar e estruturar a sua sucessão. Assim, a totalidade dos bens do testador poderá ser contemplada no testamento, desde que não exista privação ou redução da parcela da legítima.
Como se observa, o Superior Tribunal de Justiça tem buscado compatibilizar os requisitos legais que trazem segurança ao testamento com a real vontade do testador. A exemplo disso, no âmbito do REsp 1.633.254/MG, a Ministra Nancy Andrighi, relatora do recurso, fundamentou que, em casos que envolvam a sucessão por testamento, busca-se conservar a manifestação de última vontade da pessoa falecida, de modo que “as formalidades previstas em lei devem ser examinadas à luz dessa diretriz”, podendo ser excepcionalmente relativizadas6.
Portanto, o testamento representa importante mecanismo de planejamento sucessório, de modo que a doutrina e a jurisprudência avançam para desenvolver respostas cada vez mais adequadas aos desafios sucessórios, com vistas a harmonizar a vontade do testador com as disposições do ordenamento jurídico.
1 TEIXEIRA, Daniele Chaves. Notas sobre planejamento sucessório. Artigo publicado pelo Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito (CONPEDI), 2015.
2 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes; TARTUCE, Flávio. Planejamento sucessório: conceito, mecanismos e limitações. Revista Brasileira de Direito Civil, v. 21, n. 03, jul./set. 2019, p. 88.
3 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes; TARTUCE, Flávio. Planejamento sucessório: conceito, mecanismos e limitações. Revista Brasileira de Direito Civil, v. 21, n. 03, jul./set. 2019, p. 98 e 104.
4 TEPEDINO, Gustavo; NEVARES, Ana Luiza M.; MEIRELES, Rose Melo V. Fundamentos do Direito Civil: Direito das Sucessões. v.7. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 131. E-book.
5 Superior Tribunal de Justiça (STJ). Testamento pode tratar de todo o patrimônio, desde que respeite a parte dos herdeiros necessários. 27 jun. 2023. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2023/27062023-Testamento-pode-tratar-de-todo-o-patrimonio–desde-que-respeite-a-parte-dos-herdeiros-necessarios.aspx. Acesso em: 16 dez 2023.
6 Superior Tribunal de Justiça (STJ). STJ busca conciliar segurança do testamento e respeito à manifestação da última vontade. 09 out. 2022. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2022/09102022-STJ-busca-conciliar-seguranca-do-testamento-e-respeito-a-manifestacao-da-ultima-vontade.aspx. Acesso em: 16 dez 2023.