Interoperabilidade é um conceito já conhecido na teoria dos sistemas e na tecnologia da informação. Sistemas interoperáveis conseguem se comunicar e cooperar entre si e manter a coesão dos dados[1]. Diferente da integração, que resulta na interdependência desses sistemas, a interoperabilidade mantém o isolamento lógico dos sistemas. Assim, um sistema interopera com outro que possui tecnologias, finalidade e desenvolvedor diferentes. O conceito foi importado para o campo de regulação para tratar a interoperabilidade entre sistemas regulatórios internacionais – especialmente, aqueles que dizem respeito à tecnologia e à inteligência artificial.
Nas últimas décadas, o desenvolvimento tecnológico – pense nos websites, redes sociais e, por fim, inteligências artificiais – são disponibilizadas globalmente e, ao mesmo tempo, o uso das tecnologias têm impactos locais. Por isso, os desafios propostos pelo desenvolvimento técnico precisam ser enfrentados a partir de escalas bastante diferentes. Nesse cenário, sistemas regulatórios interoperáveis permitiriam a cooperação entre países em impactos tecnológicos que são globais ou conjunturalmente semelhantes e a independência para regular de maneira particular aspectos locais.
O arranjo dessas diferentes escalas em um sistema regulatório, porém, carece de buscar um ponto ótimo. Por exemplo, se a tendência se asseverar para a camada global, a regulação pode ser genérica e, por conseguinte, sem aplicabilidade. Por outro lado, se as preocupações foram apenas com os contextos locais, pode perder os benefícios da cooperação internacional. Acerca desse tema, a Data Privacy Brasil publicou um relatório denominado “Temas Centrais na Regulação de IA: o local, o regional e o global na busca da interoperabilidade regulatória”[2], em que é analisado um conjunto de fontes regulatórias advindas de diferentes contextos.
Sobre a especificidade local, o relatório pontua que o Brasil e, amplamente, o Sul Global são tecnologicamente situados como objetos de extração massiva de dados e mão de obra não especializada e, por outro lado, como mercado consumidor de tecnologias. Ou seja, as tentativas de regulação devem considerar o estado de assimetria informacional em que nos encontramos em relação aos países que processam dados com finalidade de criar tecnologias como as inteligências artificiais. Além disso, o Brasil mantém uma série de violências estruturais, como desigualdade e racismo, que não devem ser reforçadas por vieses embutidos em tecnologias. Eventuais regulações poderiam utilizar esses aspectos como critério de permissão de operação ou não de IAs nacionalmente.
O relatório constata, ainda mais, que o cenário de institucionalização de regulação relacionadas ao universo de inteligências artificiais é inevitável, pois se trata de uma tendência global. Os entes políticos querem, assim, evitar prejuízos potenciais da tecnologia, incentivando positivamente para que se dirijam para determinadas possibilidades em detrimento de outras, incentivadas negativamente. Nesse contexto, legislações, ainda que amplas, acerca do assunto não devem visar coibir regulações próprias dos setores econômicos, mas, ao contrário, estimulá-las por meio de uma estratégia bem delineada de governança.
Diante de uma arquitetura que conecta setores econômicos e protege direitos fundamentais, a eventual sobrevida da noção de que a instituição de um sistema regulatório é avessa ou crítica à inovação cai por terra. No relatório, a Data Privacy Brasil constata que não há escambo entre inovação e direitos fundamentais se a inovação for adjetivada pela ideia de responsabilidade. Ainda mais, a estabilidade e cooperação viabilizada por uma regulação coesa, interoperável e em consonância com os direitos fundamentais, de acordo com a instituição, “teria o potencial de catalisar o desenvolvimento tecnológico, econômico e social” (p. 6).
Diante do que foi exposto, vislumbramos que a interoperabilidade regulatória é importante para a cooperação no sentido de alinhar o desenvolvimento de IAs aos objetivos internacionais. Esse aspecto não deve implicar na adoção descontextualizada de estratégias regulatórias instituídas em outros países. Ao contrário, a interoperabilidade deve estar em consonância com os aspectos regionais dos impactos de desenvolvimento tecnológico.
No que diz respeito ao combate de violência estruturais e da assimetria informacional e ao incentivo de inovação responsável, o horizonte da governança de IA deve estar, em verdade, integrado (e não interoperável): com os direitos fundamentais, de modo a mitigar prejuízos aos grupos já socialmente desprivilegiados; com a educação e capacitação, visando a criação e a participação no desenvolvimento tecnológico; e com setores econômicos, propiciando a ampliação da inovação de maneira socioeconomicamente responsável.
[1]https://www.gov.br/governodigital/pt-br/governanca-de-dados/interoperabilidade#:~:text=A%20interoperabilidade%20pode%20ser%20entendida,de%20maneira%20eficaz%20e%20eficiente.
[2] BIONI, Bruno; GARROTE, Marina; GUEDES, Paula. Temas centrais na Regulação de IA: O local, o regional e o global na busca da interoperabilidade regulatória. São Paulo: Associação Data Privacy Brasil de Pesquisa, 2023. Disponível em: https://www.dataprivacybr.org/wp-content/uploads/2023/12/dataprivacy_nota-tecnica-temas-regulatorios.pdf