
A era digital transformou profundamente a forma como adquirimos, armazenamos e utilizamos bens, alterando também a maneira de identificá-los, protegê-los e transmiti-los. Se antes o patrimônio de uma pessoa era composto por elementos nitidamente materiais, hoje a noção de bens abrange arquivos, contas, memórias digitais e ativos virtuais de naturezas diversas. Esse cenário, cada vez mais complexo, trouxe desafios significativos ao Direito das Sucessões, sobretudo quando os herdeiros não dispõem das senhas ou meios de acesso aos dispositivos do falecido. A ausência de legislação específica no Brasil apenas acentua a necessidade de construção jurisprudencial consistente.
Nessa perspectiva, o Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o REsp 2.124.424-SP[1], de relatoria da ministra Nancy Andrighi, firmou importante orientação ao reconhecer que o acesso a bens digitais de pessoa falecida não configura questão de alta indagação. Por essa razão, deve ser tratado no próprio inventário, dispensando a propositura de ação autônoma. O precedente representa avanço relevante na conformação da chamada herança digital, ao permitir que o tema seja abordado sem rupturas no curso do inventário e sob controle judicial adequado.
O grande desafio enfrentado pelo STJ consistiu em equilibrar dois valores constitucionais potencialmente conflitantes: de um lado, o direito dos herdeiros à transmissão de todos os bens do falecido, assegurado pelo art. 5º, XXX, da Constituição[2]; de outro, a preservação dos direitos da personalidade do falecido e de terceiros, que podem ser sensivelmente afetados pelo acesso indiscriminado a conteúdos privados. A decisão reconhece que nem todos os bens digitais são transmissíveis e que o respeito à intimidade e à dignidade permanece como limite intransponível.
Para viabilizar essa proteção, o STJ delineou a solução do incidente processual de identificação, classificação e avaliação de bens digitais, a ser apensado ao inventário. Com base no poder geral de adequação do juiz (art. 139 do CPC[3]) e no dever de decidir mesmo diante de lacunas legislativas (art. 140 do CPC[4]), o Tribunal estruturou um mecanismo que permite o avanço do inventário quanto aos bens analógicos, enquanto os dispositivos eletrônicos do falecido são analisados por profissional especializado em ambiente controlado. A triagem judicial subsequente garante que apenas conteúdos patrimonialmente relevantes e não violadores de direitos da personalidade sejam disponibilizados aos herdeiros.
Surge, então, a figura do chamado inventariante digital. Embora guarde proximidade com a atuação do perito judicial, sua função é específica: acessar os dispositivos do falecido, identificar eventuais bens digitais, registrar tudo de forma técnica e minuciosa e encaminhar relatório ao juiz responsável. Cabe ao magistrado, e não ao profissional, definir o que pode ou não ser transmitido, respeitando os limites impostos pelos direitos fundamentais. Trata-se de atividade que exige sigilo e responsabilidade, sujeita a eventual responsabilização civil ou criminal em caso de violação ao dever de confidencialidade.
A solução construída pelo STJ não apenas supre o vácuo legislativo existente, mas também demonstra a capacidade do Judiciário de adaptar-se às transformações tecnológicas que permeiam a vida cotidiana. Ao reconhecer a existência e a importância dos bens digitais, o Tribunal reafirma que o Direito Sucessório não pode permanecer restrito a categorias tradicionais, sob pena de se afastar da realidade social. A herança digital já é uma dimensão concreta do patrimônio contemporâneo, e sua adequada regulamentação – legislativa ou jurisprudencial – é indispensável.
A criação do incidente processual e a institucionalização do inventariante digital mostram-se instrumentos aptos a equilibrar interesses patrimoniais e personalíssimos, assegurando aos herdeiros o acesso ao que é transmissível, sem descurar da intimidade do falecido. Com isso, a decisão do STJ representa passo significativo na evolução do Direito das Sucessões brasileiro, oferecendo respostas modernas e sensíveis à complexidade da vida digital.
Referências
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
BRASIL. Código de Processo Civil. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REsp 2.124.424/SP. Rel. Min. Nancy Andrighi. Julgado em 27 set. 2022.
[1] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 2.124.424-SP. Relator: Ministra Nancy Andrighi. Julgado em 9 de setembro de 2025.Disponível em:
[2] “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (…) XXX – é garantido o direito de herança”.
[3]“Art. 139. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código (…)”
[4] “Art. 140. O juiz não se exime de decidir sob a alegação de lacuna ou obscuridade do ordenamento jurídico”.