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[CONJUR] Cláusula de step in no seguro-garantia: perspectivas regulatórias

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A cláusula de step in foi uma novidade prevista pelo art. 102 da Nova Lei de Licitações para o seguro-garantia de fiel cumprimento do ramo público. Inspirada no modelo norte americano de performance bond, a intenção do legislador era de “emplacar” a retomada de obras como uma das formas de indenização nas apólices de seguro-garantia e assim contribuir para a diminuição do vexaminoso percentual de 41% de obras paralisadas no Brasil (conforme último relatório do TCU sobre o tema)[1].

Não que a opção pela retomada de obras inexistisse nos clausulados de seguro-garantia brasileiros anteriores à nova lei. Os clausulados padronizados da Susep nas revogadas Circulares nº 232/2003 e nº 477/2013 já traziam de forma expressa tal alternativa de indenização, porém na prática as seguradoras sempre optaram pela indenização em dinheiro. Dentre os fatores que explicam a absoluta predominância das indenizações em espécie, destacam-se os baixos percentuais previstos na lei brasileira para o valor das garantias de contratos públicos – 5% ou 10%, enquanto na lei federal norte americana se prevê garantias de 100% do valor dos contratos[2]. Soma-se a isso a falta de interesse das seguradoras em se arriscar nas retomadas de obras, haja vista o perigo de se sujeitar à transferência automática de diversos riscos (trabalhistas, ambientais etc.) na ausência de legislação específica que regule a intervenção da seguradora.

A Nova Lei de Licitações tentou atacar esses dois obstáculos, ainda que de forma tímida. Com relação ao percentual de valor das garantias, facultou à Administração exigir até 30% do valor dos contratos, porém apenas nas obras de engenharia de grande vulto[3]. Já no que diz respeito à falta de interesse das seguradoras em retomar as obras (afinal, é muito mais fácil simplesmente pagar o valor indenizatório em dinheiro), o parágrafo único do art. 102 da nova lei estabeleceu um mecanismo de incentivo ao exercício do step in: caso a Seguradora opte por pagar a indenização em espécie, não indenizará somente os prejuízos sofridos pelo ente público e cobertos pelo seguro, mas deverá pagar a integralidade do limite máximo de garantia – uma arrojada flexibilização do princípio indenitário que rege os contratos de seguro de danos[4]. Dessa forma, a retomada da obra tem chances de ser menos onerosa do que o pagamento, sobretudo se a seguradora conseguir ser eficiente.

De nada adiantam tais novidades legislativas, contudo, se o mercado securitário seguir sem apetite para esse tipo de risco. Emitir apólices com cláusula de step in exige investimentos relevantes das companhias seguradoras e aumenta de forma significativa sua exposição em caso de sinistro; poucas se aventurarão neste terreno sem alguma contrapartida – não apenas financeira, mas sobretudo em termos de segurança jurídica.

Passados mais de dois anos da publicação da Nova Lei de Licitações (abril de 2021), não se veem ainda muitas emissões com cláusula de step in e não há garantia de que tal cenário mudará a partir de janeiro de 2024, quando a adoção da nova lei nas contratações públicas passará a ser obrigatória. A Susep estuda a regulamentação da cláusula step in[5], considerando que a Nova Lei de Licitações tratou do tema de forma lacônica e a Circular Susep nº 662/2022 (nova norma que disciplina o seguro-garantia) silencia sobre o tema.

Parece-nos que a iniciativa regulatória é válida, uma vez que os principais atores envolvidos nas obras públicas ainda estão um pouco inseguros com o tema, especialmente em razão do desconhecimento das regras de funcionamento do seguro-garantia e da incompatibilidade entre os editais e contratos públicos e o clausulado das apólices. Dificilmente a cláusula de step in vingará se a missão de criar as regras do jogo recair unicamente sob os responsáveis pela redação dos editais das contratações públicas, ou sob os responsáveis pela redação do clausulado das apólices. É recomendável a participação de ambos os lados – Administração Pública e mercado securitário – na estipulação de regras gerais que tragam mais conforto, alcançando-se alguns consensos. Somente assim o produto encontrará compatibilidade com o contrato garantido e alcançará a eficácia – e, por consequência, a sua função social precípua, que é mitigar o risco de paralização das obras públicas.

Entendemos que um bom ponto de partida seria a norma regulatória esclarecer que o limite máximo de garantia da apólice com cláusula de step in (que pode alcançar até 30% do valor do contrato, como visto) deve ser respeitado, inclusive nos casos em que se optar pela retomada. Vincular as seguradoras ao dever de retomar e concluir a obra sem qualquer limitação de valor é desnaturar a lógica econômica que ampara a operação de seguro, inviabilizando a precificação adequada pela assunção do risco[6]. Nenhuma seguradora optará por exercer o step in se isso a sujeitar a um risco que pode ir (muito) além daquele que foi assumido; notadamente, a retomada das obras também se sujeita a uma série de fatores imprevisíveis que poderão afetar o valor inicialmente previsto para a sua conclusão (aumento do preço de insumos, atrasos causados por eventos climáticos, default de subcontratados, mudanças de projeto etc.).

Outra medida que pode ser adotada é permitir/regular que a seguradora atue conjuntamente com o segurado na fiscalização do contrato antes mesmo da ocorrência do sinistro – hipótese que pode ser extraída da interpretação do art. 102 da Nova Lei de Licitações, a qual prevê a possibilidade de a Seguradora realizar contratos e termos aditivos com a interveniente-anuente das obras. Embora a iniciativa possa ser inicialmente recebida com desconfiança pelos agentes burocráticos da Administração, a medida pode demonstrar-se benéfica ao segurado não só por mitigar a ocorrência de sinistro, mas também por tornar a retomada das obras opção mais confortável às seguradoras, na medida em que as aproxima da realidade da execução do contrato e diminui a assimetria informacional entre seguradora, tomador e segurado.

A norma regulatória também poderá liberar os valores indenizatórios para a efetiva retomada. Como se sabe, as apólices de seguro-garantia do ramo público sempre incluem cobertura de multas, inclusive por força de lei (art. 97 da Nova Lei de Licitações). Se houver o default da construtora e a apólice for acionada, de pouco adiantará o seguro conter cláusula de step in se boa parte dos valores indenizatórios for consumido com a indenização de multas (moratórias e rescisória). A norma infralegal poderia prever que a indenização de eventuais multas ocorreria somente em um segundo momento (de forma subsidiária e na hipótese de não se ter atingido o limite máximo de garantia), permitindo que a seguradora antes disponha dos valores da garantia para investir na conclusão da obra.

A regulamentação também poderia ir além e, reforçando as condições da apólice, prever expressamente que riscos se encontram excluídos da cobertura básica do seguro – tais como indenizações por danos ambientais e inadimplemento de obrigações trabalhistas do tomador. Assim as seguradoras se sentiriam mais confortáveis em retomar as obras, na certeza de que o valor do limite máximo da garantia seria destinado unicamente à sua conclusão, e não ao cumprimento de outras obrigações que não guardam relação com objeto do seguro.

Outro ponto da lei que poderia ser melhor regulamentado diz respeito às alternativas que poderão ser adotadas em caso de inadimplemento do contratado. O parágrafo único do art. 102 da Nova Lei de Licitações apresenta apenas dois caminhos para a seguradora: pagar a integralidade do limite máximo da garantia, sem qualquer garantia de que o dinheiro será utilizado para a conclusão das obras, ou assumir a execução e conclusão do objeto do contrato, sem especificar de que forma isso se dará (nova licitação pelo segurado, com o aporte de valores pela seguradora? Escolha da empresa substituta pela seguradora? etc.). Nos clausulados de seguro-garantia comumente adotados nos Estados Unidos[7], deixa-se claro que a seguradora pode adotar outras linhas de ação além dessas duas – as quais dependem, é claro, de prévia anuência e acordo com o segurado da apólice.

Como exemplo: a seguradora poderá apresentar propostas à Administração de construtores substitutos para que estes concluam a obra e, caso alguma proposta seja aceita (a qual deverá estar assegurada por uma nova apólice de seguro-garantia com cláusula de retomada), a seguradora paga ao segurado o equivalente ao sobrecusto – isto é, a diferença entre o valor do contrato original e do novo contrato para a retomada. Ou ainda, a seguradora poderá manter a construtora original (tomadora da apólice) à frente da obra e financiá-la / apoiá-la tecnicamente (respeitado o valor da garantia) para que consiga concluir suas obrigações nas condições contratadas. A ideia é que a seguradora tenha mais opções de indenização, escolhendo aquela – com a concordância do segurado, a depender do caso – mais eficiente para assegurar a conclusão da obra. Tais opções deverão garantir ao mesmo tempo a celeridade e a legalidade do procedimento de retomada, resguardando a seguradora contra os desafios e riscos próprios do ramo público (por exemplo, favorecimento de agentes públicos e privados em detrimento do objetivo do seguro e interesse público).

Não se ignora que a intervenção regulatória somente pode ir até certo ponto. Naturalmente, o mais importante é que as seguradoras se estruturem, tanto para aperfeiçoar a subscrição do risco, quanto viabilizar as retomadas, com investimentos em parcerias estratégicas e consultorias especializadas que avaliem aspectos técnicos e jurídicos do contrato, incluindo a matriz de alocação de riscos e especificidades técnicas do projeto, e não apenas a capacidade financeira/solvência do tomador. Há também que se ter um planejamento cuidadoso na confecção dos instrumentos que compõem o nexo de contratos envolvidos na operação (contrato administrativo e edital, apólice de seguro-garantia, takeover agreement etc.). De qualquer forma, é muito bem-vinda a estipulação de regras gerais que diminuam algumas incertezas relacionadas às retomadas, alinhando as expectativas dos diferentes atores envolvidos e deixando claro o que o produto securitário pode – e não pode – entregar.

 

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[1] Acórdão Nº 2134/2023 – Plenário do TCU, Sessão de 18/10/2023.

[2] O Miller Act prevê a obrigatoriedade de tal percentual de garantia para todos os contratos com valor superior a US$ 150.000,00 (cento e cinquenta mil dólares). O valor de 150 mil dólares foi estabelecido pelo art. 48 CFR 28.102-2 (b) do Regulamento de Aquisições Federais (FAR) nos Estados Unidos.

[3] Conforme art. 99 da Lei 14.133/2021. “Obras, serviços e fornecimentos de grande vulto” são definidos pelo art. 6º, XXII da lei como aqueles cujo valor estimado supera R$ 200.000.000,00 (duzentos milhões de reais).

[4] Acerca do princípio indenitário, o STJ já afirmou que “o seguro não é um contrato lucrativo, mas de indenização, devendo ser afastado, por um lado, o enriquecimento injusto do segurado e, por outro, o estado de prejuízo” (REsp 1.546.163 Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, DJe 16.05.2016).

[5] Vide: > SUSEP tem grupo para discutir regulamentação do seguro-garantia para grandes obras – Agência iNFRA <.

[6] Como bem explica Pedro Alvim, o prêmio cobrado pela seguradora constitui o “preço do risco” (O contrato de seguro. 3ª edição, Rio de Janeiro, 1999, p. 269).

[7] Por exemplo: A313 – 2010, da “American Institute of Architects”; e C-610 – 2018 da EJCDC (“Engineers Joint Contract Documents Committee”).

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