ANEEL e a Garantia de Fiel Cumprimento.
Por Pedro Cardoso de Almeida Andrade Costa, Advogado, Mestre em Direito Securitário pela Queen Mary University of London.
Com a implementação do Programa Nacional de Desestatização durante meados dos anos 90[i], a participação de entes privados na geração, transmissão e distribuição, assim como na compra e venda de energia elétrica, tomou frente para o desenvolvimento da malha energética nacional, por intermédio de autorizações ou concessões realizadas pela União.
Para tanto, mediante edição das Leis nº 8.987/1995[ii] e da Lei nº 8.666/1993, fora determinado a adoção de regime licitatório para a assinatura de Contratos de Concessão ou emissão de Autorizações por parte do poder concedente, visando assim prestigiar os princípios da legalidade, impessoalidade e igualdade[iii].
Por sua vez, em vista a natureza essencial dos serviços de geração, transmissão e distribuição de energia, o Poder Concedente exige do particular a apresentação de garantias quanto à execução dos serviços concedidos, em especial a chamada “garantia de fiel cumprimento”[iv], a ser apresentada, via de regra, conforme as modalidades dispostas no artigo 56 da Lei 8.666/1993[v].
Neste cenário, o mercado securitário e o produto seguro-garantia é capaz de proporcionar aos concessionários garantias hígidas, amplamente aceitas pelos órgãos fiscalizadores – ANEEL e CCEE, por exemplo – as quais oferecem taxas de contraprestação – prêmio – relevantemente mais vantajosas do que demais formas de garantia, como fianças bancárias ou títulos da dívida pública.
Entretanto, a recorrente modificação dos Editais licitatórios, a interpretação particular quanto a natureza e amplitude da garantia de fiel cumprimento, assim como a adoção de medidas unilaterais pela Agência Nacional de Energia Elétrica, traz uma grande parcela de incerteza no tocante aos processos de fiscalização e penalização de Contratos de Concessão e Autorizações, cabendo atenção redobrada à Cias Seguradoras quais subscrevem tais riscos.
Isto porque a ANEEL enquanto órgão competente à fiscalização das instalações e serviços de energia elétrica, é a autarquia responsável pela avaliação quanto ao atendimento dos particulares aos termos dos Editais Licitatórios e obrigações estipuladas no Contrato de Concessão ou Termo de Autorização.
Por reiteradas vezes, em um passado não longínquo, o procedimento padrão da ANEEL e de suas Superintendências de Fiscalização consistia na execução integral das garantias de fiel cumprimento aportadas pelos Concessionados ou Autorizados, lastreado em “Entendimentos”[vi] exarados pela Diretoria Colegiada da ANEEL, os quais, em suma, compreendem ser a execução da garantia contratual uma penalidade por si só, determinando sua perda em vista a ocorrência de algum inadimplemento, como atraso em entrada de operação, ou atraso na realização de benfeitorias para implantação dos empreendimentos de geração, transmissão e distribuição.
Neste cenário, a determinação de execução da garantia de fiel cumprimento era então procedida sem a realização de processo administrativo próprio, sem conter informações de penalidade, ou ainda, sem a realização de processo administrativo apuratório de prejuízos, de modo prescindir do contraditório e ampla defesa ao Concessionário, tampouco à garantidora, em desatenção ao princípio indenitário[vii].
Portanto, nota-se que do ponto de vista dos garantidores, em especial das Cias. Seguradoras, as medidas de possível adoção em face da execução da garantia eram de natureza reacionária, visando discutir as decisões da Administração.
Neste sentido, os Entendimentos da ANEEL, em que pese amplamente utilizados, podem suscitar discussões, sendo reiteradamente questionada judicialmente sua legalidade pelos Concessionários e criticado pela própria Procuradoria Federal junto a ANEEL, ao longo dos anos[ix].
Entretanto, possivelmente por conta dos revezes judiciais sofridos e do posicionamento reiterado de seus Concessionários, foi possível observar que a ANEEL alterou sua forma de fiscalizar seus Contratos de Concessão e Termos de Autorização, incluindo a aplicação de penalidades pecuniárias aos Concessionários[x], medida não adotada em grande profusão anteriormente.
Atualmente, nota-se que as Superintendências de Fiscalização têm por praxe intimar a Cia. Seguradora para manifestar-se nos respectivos processos administrativos apuratórios e de penalização desde a instauração, de modo a permitir à garantidora o contraditório e ampla defesa no processo que poderá resultar na determinação de execução da garantia de fiel cumprimento.
Assim, ainda que a Cia. Seguradora não seja parte direta do processo de apuração, fiscalização ou penalidade instaurado pela ANEEL, convém a ela, na qualidade de garantidora, manifestar-se no respectivo processo administrativo, elucidando as questões atinentes ao seguro prestado e fazendo constar as informações e protestos necessários.
A manifestação no processo administrativo pela Seguradora não lhe tolhe a possiblidade de questionar ou discordar judicialmente da decisão tomada pela Agência Reguladora (em especial quando da não apuração de prejuízos para execução da garantia) mas lhe oferece a possibilidade de elucidar administrativamente questões essenciais ao Segurado, podendo assim mitigar o recebimento de aviso de sinistro.
Portanto, as Seguradoras devem permanecer atentas quanto as modificações e atualizações dos procedimentos internos de seus Segurados, visando defender seus interesses e buscando soluções administrativas que lhe diminuam a exposição ao risco subscrito, sendo assim providencial o bom assessoramento técnico, com experiência e expertise, para o atingimento de melhores resultados.
[i] Programa Nacional de Desestatização, inicialmente instituído por Medida Provisória convertida na Lei nº 8.031/90, posteriormente reformulada pela Lei nº 9.491/97.
“Art. 1º O Programa Nacional de Desestatização – PND tem como objetivos fundamentais:
I – reordenar a posição estratégica do Estado na economia, transferindo à iniciativa privada atividades indevidamente exploradas pelo setor público;”
[ii] Art. 2o Para os fins do disposto nesta Lei, considera-se:
I – poder concedente: a União, o Estado, o Distrito Federal ou o Município, em cuja competência se encontre o serviço público, precedido ou não da execução de obra pública, objeto de concessão ou permissão;
II – concessão de serviço público: a delegação de sua prestação, feita pelo poder concedente, mediante licitação, na modalidade de concorrência, à pessoa jurídica ou consórcio de empresas que demonstre capacidade para seu desempenho, por sua conta e risco e por prazo determinado;
III – concessão de serviço público precedida da execução de obra pública: a construção, total ou parcial, conservação, reforma, ampliação ou melhoramento de quaisquer obras de interesse público, delegada pelo poder concedente, mediante licitação, na modalidade de concorrência, à pessoa jurídica ou consórcio de empresas que demonstre capacidade para a sua realização, por sua conta e risco, de forma que o investimento da concessionária seja remunerado e amortizado mediante a exploração do serviço ou da obra por prazo determinado;
IV – permissão de serviço público: a delegação, a título precário, mediante licitação, da prestação de serviços públicos, feita pelo poder concedente à pessoa física ou jurídica que demonstre capacidade para seu desempenho, por sua conta e risco.
[iii] Lei 8.666/1993
Art. 3o A licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia, a seleção da proposta mais vantajosa para a administração e a promoção do desenvolvimento nacional sustentável e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos.
[iv] “Lei 8.987/1995
DO CONTRATO DE CONCESSÃO
Art. 23. São cláusulas essenciais do contrato de concessão as relativas: (…)
V – aos direitos, garantias e obrigações do poder concedente e da concessionária, inclusive os relacionados às previsíveis necessidades de futura alteração e expansão do serviço e conseqüente modernização, aperfeiçoamento e ampliação dos equipamentos e das instalações;
(…)
Parágrafo único. Os contratos relativos à concessão de serviço público precedido da execução de obra pública deverão, adicionalmente:
II – exigir garantia do fiel cumprimento, pela concessionária, das obrigações relativas às obras vinculadas à concessão.”
[v] Lei 9.427/1996
Art. 26. Cabe ao Poder Concedente, diretamente ou mediante delegação à ANEEL, autorizar: (…)
§ 11. Nos processos de outorga de autorização, inclusive na realização dos estudos e dos projetos, é facultada ao agente interessado a apresentação de qualquer uma das modalidades de garantia previstas no § 1o do art. 56 da Lei no 8.666, de 21 de junho de 1993.
[vi] Documento ANEEL 48526.001899/2016-00
“Os procedimentos adotados pela SCT para execução da Garantia de Fiel Cumprimento em razão dos atrasos nos empreendimentos de transmissão têm base em entendimentos prevalecentes na Diretoria Geral da ANEEL, em seu conjunto definidos nesta Nota Técnica como ENTENDIMENTO DA ANEEL. Em síntese, o ENTENDIMENTO DA ANEEL é:
ENTENDIMENTO Nº 1: a caracterização do descumprimento do cronograma de
implantação e a observância ao contraditório e à ampla defesa pelo interessado são requisitos suficientes para iniciar o procedimento tendente à execução de garantia de fiel cumprimento;
ENTENDIMENTO Nº 2: As licitações e os prazos de implantação estabelecidos respondem a necessidades detectadas pela Administração e o prejuízo é consequência imediata e inevitável do atraso ou da ausência de entrega do objeto contratado;
ENTENDIMENTO Nº 3: a execução prescinde da apuração dos prejuízos incorridos pela Administração Pública;
ENTENDIMENTO Nº 4: exigir a comprovação do prejuízo burocratizaria o processo, desvirtuando a essência e a finalidade da garantia, que são precisamente as de viabilizar execução célere e eficaz;
ENTENDIMENTO Nº 5: a Lei n. 8.666/1993 e o Edital não exigem a demonstração do prejuízo como antecedente da execução da garantia de fiel cumprimento;
ENTENDIMENTO Nº 6: cabe à SCT executar o procedimento tendente à execução da garantia contratual em relação aos atrasos dos empreendimentos de transmissão.
ENTENDIMENTO Nº 7: a execução da garantia é penalidade cabível em caso de atraso na implantação das obras;
ENTENDIMENTO Nº 8: a execução da garantia pode ser aplicada de forma cumulativa com outras penalidades contratuais;
ENTENDIMENTO Nº 9: a execução da Garantia de Fiel Cumprimento não implica na rescisão do contrato de concessão;
ENTENDIMENTO Nº 10: a execução da garantia não exime o CONCESSIONÁRIO da obrigação de concluir a implantação do empreendimento e das demais obrigações do contrato;
ENTENDIMENTO Nº 11: a Lei n. 8.666/1993 aplica-se ao contrato de concessão
[vii]Art. 782 do Código Civil: “A indenização não pode ultrapassar o valor do interesse segurado no momento do sinistro, e, em hipótese alguma, o limite máximo da garantia fixado na apólice, salvo em caso de mora do segurador”.
[viii] “RECURSO ESPECIAL. CIVIL. DIREITO SECURITÁRIO. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. NÃO OCORRÊNCIA. SEGURO DE AUTOMÓVEL. PERDA TOTAL DO VEÍCULO. INDENIZAÇÃO. APURAÇÃO. VALOR MÉDIO DE MERCADO DO BEM. TABELA FIPE. DATA DA LIQUIDAÇÃO DO SINISTRO. ABUSIVIDADE. ADEQUAÇÃO. DIA DO SINISTRO. PRINCÍPIO INDENITÁRIO. 1. (…) 2. O Código Civil de 2002 adotou, para os seguros de dano, o princípio indenitário, de modo que a indenização securitária deve corresponder ao valor real dos bens perdidos, destruídos ou danificados que o segurado possuía logo antes da ocorrência do sinistro. Isso porque o seguro não é um contrato lucrativo, mas de indenização, devendo ser afastado, por um lado, o enriquecimento injusto do segurado e, por outro, o estado de prejuízo. 3. Nos termos do art. 781 do CC, a indenização no contrato de seguro possui alguns parâmetros e limites, não podendo ultrapassar o valor do bem (ou interesse segurado) no momento do sinistro nem podendo exceder o limite máximo da garantia fixado na apólice, salvo mora do segurador. Precedentes. (…) 6. Recurso especial provido.” (STJ, 3ª Turma, REsp 1546163/GO, Relator: Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 5/5/2016, DJe 16/5/2016.) (sem destaque no original)
[ix] Pareceres nº 0095/2011/PGE-ANEEL, nº 0108/2015-PF-ANEEL/PGF/AGU, nº 00310/2015/PFANEEL/PGF/AGU e nº 00012/2017/PFEANEEL/PGF/AGU.
[x] 48500.003628/2017-17 e 48500.004101/2017-00, por exemplo.