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A discussão sobre a concessão de patentes na crise de saúde

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Por Letícia Klechowicz, Trainee na Poletto & Possamai Sociedade de Advogados e graduanda em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR)

A patente é um dos instrumentos jurídicos voltados à proteção da propriedade intelectual, ou seja, das criações humanas. No Brasil, destina-se, de forma mais específica, ao proveito da invenção ou do modelo de utilidade dentro da indústria. Representada por meio da carta-patente, expedida por autarquia federal competente, a concessão da patente[1] garante ao seu titular o direito exclusivo de explorar o objeto ou processo patenteado por determinado período.

No Brasil, a Constituição garante, em seu art. 5º, inciso XXIX, que “a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização”. O pedido de patente, no país, é depositado perante o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), que para concessão segue os dispositivos da Lei de Propriedade Industrial (Lei nº 9.279/96).

Assim, de acordo com seu art. 8º, “é patenteável a invenção que atenda aos requisitos de novidade, atividade inventiva e aplicação industrial”. Em complemento, o art. 9º prevê que também é patenteável, como modelo de utilidade, “o objeto de uso prático, ou parte deste, suscetível de aplicação industrial, que apresente nova forma ou disposição, envolvendo ato inventivo, que resulte em melhoria funcional no seu uso ou em sua fabricação.”.

Uma vez concedida, a patente confere exclusividade temporária de exploração ao titular. Para proteger o objeto ou processo patenteado no exterior, é necessário o depósito de pedido de patente em cada país de interesse. Como a exclusividade possibilita o proveito econômico sobre a invenção, a patente é uma forma de incentivar o desenvolvimento tecnológico.

No entanto, em situações de emergência, a discussão sobre a exceção a este direito se intensifica. Exemplo anterior e pioneiro desta ocorrência no Brasil foi o licenciamento compulsório do efavirenz, medicamento utilizado no tratamento contra o vírus HIV. Com o feito, o Brasil passou a fornecer o fármaco com menor custo.

Ressalva-se, no entanto, o perigo no uso da comum expressão quebra de patente. O que existe, e foi o utilizado à época, é o licenciamento compulsório previsto na Lei de Propriedade Industrial, que evita abusos do detentor do direito de patente.[2] Na ocasião, para operacionalizar o licenciamento, o Brasil pagou royalties ao laboratório Merck, então fabricante.[3]

As regras sobre licenciamento compulsório estão na Seção III do Capítulo VIII da Lei nº 9.279/96, e incluem como condição possível casos de emergência nacional ou de interesse público.

No cenário atual de pandemia, discussões sobre a patenteabilidade de itens relacionados à saúde recebem destaque – na medida em que pesquisas sobre medicamentos e vacinas passam a ser a notícia de maior anseio pela população.

Em caso de descoberta de uma vacina, há o temor de que a necessidade sem precedentes desta criação torne o seu valor astronômico. No entanto, o preço deve ser ponderado com critérios idênticos ao de qualquer outro medicamento: não deve haver abusividade em razão da urgência. Caso necessário, existem meios de coibir o abuso, como o instituto do licenciamento compulsório.[4]

Tentativas de cooperação entre os países para desenvolver tratamentos e a vacina também vêm sendo frequentes. Como esclarece a cientista brasileira, Daniela Ferreira, que integra pesquisa da vacina de Oxford, “a vacina é para o mundo inteiro; tem de haver uma colaboração internacional e tem de ser solidária, não pode ser ditada por interesses comerciais e preços.” [5]

No âmbito internacional, países como Equador, Chile, Alemanha e França iniciaram discussões e tratativas que podem facilitar o licenciamento compulsório para patentes no combate ao coronavírus. O primeiro país a efetivamente utilizar a ferramenta neste cenário foi Israel, para importar um medicamento genérico a ser utilizado no tratamento da doença.[6]

Outra discussão que ganhou destaque em todo o mundo em decorrência da pandemia é aquela sobre as chamadas patentes de segunda utilidade. Diversas pesquisas vinculadas à Covid-19 utilizam medicamentos e fórmulas já conhecidas, ou seja, buscam um segundo uso médico para moléculas já patenteadas.[7]

A possibilidade de patentear o medicamento de segundo uso é controversa e, no Brasil, divide opiniões entre o INPI (favorável à concessão) e a ANVISA (contrária à possibilidade)[8]. Em resumo, posicionamentos contrários alegam que este segundo uso não se enquadraria nos critérios de atividade inventiva, um dos requisitos para a concessão da patente. Por outro lado, o INPI defende que a patente seria concedida apenas após criteriosa análise, caso constatado que a nova aplicação preenche os requisitos legais.[9]

É necessário ressaltar o papel do registro de patente no incentivo ao desenvolvimento científico e tecnológico. Medidas como o licenciamento compulsório representam uma suspensão temporária da exclusividade concedida ao titular, através de normas nacionais e internacionais; e não um rompimento completo deste direito. Para impulsionar as inovações ressalva-se que medidas como esta são a exceção diante de situações graves e atípicas.

A maior crise de saúde do século, no entanto, coloca em pauta a necessidade dessas discussões – tanto para possibilitar o novo uso de medicamentos já conhecidos, quanto para pensar na futura distribuição de uma vacina eficaz.


[1]Definição de patente. SEBRAE. Acesso em: https://m.sebrae.com.br/sites/PortalSebrae/artigos/definicao-de patente,230a634e2ca62410VgnVCM100000b272010aRCRD

[2]HIV/AIDS: Produção do Efavirenz completa 11 anos. Publicado em 10.03.1018. Acesso em: https://portal.fiocruz.br/noticia/hivaids-producao-do-efavirenz-completa-11-anos

[3] RIBEIRO, Ana Paula; GUERREIRO, Gabriela. Governo federal quebra patente de medicamento anti-Aids. Publicado em 04.05.2007. Acesso em: https://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u134976.shtml

[4] OLIVEIRA, Juliano R. Covid 19, vacinas e a licença compulsória de patentes. Publicado em 01.06.2020. Acesso em: http://www.oabes.org.br/artigos/covid-19-vacinas-e-a-licenca-compulsoria-de-patentes-58.html

[5]FERREIRA, Daniela. “Ideia não é ter uma competição”, diz imunologista brasileira sobre vacina contra a covid. Publicado em 01.06.2020. Acesso em: https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,ideia-nao-e-ter-uma-competicao-diz-imunologista-brasileira-sobre-vacina-contra-a-covid-19,70003321603

[6] GREEN, Andrew. COVID-19: Countries race to strength compulsory licensing legislagion. Publicado em: 20.06.2020. Acesso em: https://www.devex.com/news/covid-19-countries-race-to-strengthen-compulsory-licensing-legislation-97595

[7]MAIA, Mauro S. A pesquisa de vacinas e medicamentos da Covid-19. Publicado em 13.06.2020. Acesso em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-pesquisa-de-vacinas-e-medicamentos-da-covid-19-13062020

[8]INPI e ANVISA divergem sobre patentes de segundo uso. Publicado em 27.10.2009. Acesso em: ttps://www.camara.leg.br/noticias/135029-inpi-e-anvisa-divergem-sobre-patentes-de-segundo-uso/

[9]MAIA, Mauro S. A pesquisa de vacinas e medicamentos da Covid-19. Publicado em 13.06.2020. Acesso em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-pesquisa-de-vacinas-e-medicamentos-da-covid-19-13062020

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