Hélio Gilberto Belfort Amaral, advogado e internacionalista com MBA em Gestão Empresarial
O dia 30 de abril de 2019 viu a instituição, por meio da Medida Provisória nº 881, da Declaração de Direitos de Liberdade Econômica. A norma faz parte da agenda liberalizante do atual governo e, em larga medida, serve muito mais como uma declaração de “a que veio” a administração Bolsonaro do que como efetiva medida para solução de alguma circunstância imediata.
Tal característica gerou imediata repercussão no meio jurídico em virtude dos requisitos constitucionais para a edição de Medidas Provisórias pelo presidente da república: a relevância e a urgência.
Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional.
É certo que os governos, desde a promulgação da nossa constituição, em 1988, flexibilizaram sobremaneira tais requisitos – vide a necessidade de, em 2001, enrijecer os mecanismos de perda de eficácia de Medidas Provisórias não apreciadas pelo Congresso Nacional.
Não obstante, as próprias disposições do Capítulo I da MPV 881 enfraquecem os argumentos de relevância e urgência, vez que tratam de adequar ao máximo a medida aos ditames constitucionais e legais, excluindo de seu âmbito de incidência matérias vedadas de edição por Medida Provisória e dispondo sobre a interpretação normativa, não havendo qualquer indicativo de situação extraordinária que a justifique.
Logo, pode-se vislumbrar um caminho tortuoso nos 120 dias (60 renováveis por outros 60) que o Congresso possui para apreciar a MPV 881. Não devem ser poucas as questões formais atacadas e a manutenção dos termos em que foi redigida será um teste da força política dos atuais mandatários do poder executivo.
O conteúdo em si da MPV 881 representa um recuo da máquina estatal de sua posição sobre a iniciativa privada. Trata-se de um reconhecimento de que o poder regulamentador do Estado extrapola, muitas vezes, o limite da razoabilidade, criando verdadeiros ônus ao exercício de atividade econômica. Essa preocupação é perceptível já nos primeiros artigos da medida, especialmente o art. 1º, § 1º:
Art. 1º,§ 1º O disposto nesta Medida Provisória será observado na aplicação e na interpretação de direito civil, empresarial, econômico, urbanístico e do trabalho nas relações jurídicas que se encontrem no seu âmbito de aplicação, e na ordenação pública sobre o exercício das profissões, juntas comerciais, produção e consumo e proteção ao meio ambiente.
Tratar, já na largada, de aplicação e interpretação de normas é formatação legislativa típica de diplomas abrangentes, como: a nossa Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), anteriormente conhecida como Lei de Introdução ao Código Civil; nosso Código Penal, cuja parte geral trata de conceitos; ou mesmo nossa CLT, que em seus primeiros artigos possui preceitos de interpretação.
Mas a MP 881 vai além. Além de estabelecer orientações para aplicação e interpretação de normas, explicita princípios norteadores para tal em seu art. 2º:
Art. 2º São princípios que norteiam o disposto nesta Medida Provisória:
I – a presunção de liberdade no exercício de atividades econômicas;
II – a presunção de boa-fé do particular; e
III – a intervenção subsidiária, mínima e excepcional do Estado sobre o exercício de atividades econômicas.
Princípios, na hermenêutica jurídica contemporânea, exercem papel significativo na harmonização de normas, sobretudo as infraconstitucionais. Dessa forma, ao explicitar os princípios que fundamentam a MP 881, coloca-se não apenas o conteúdo da norma como de observância necessária, mas também a lógica subjacente que levou à edição de tais normas e, consequentemente, pode ser aplicada a situações congêneres.
Seria suficientemente ousada a reversão dos últimos 20 anos de recrudescimento do aparato regulatório estatal, mas a MP 881 deu um passo além. Estabeleceu, além de parâmetros hermenêuticos e normativos, direitos e garantias para resguardar as pessoas físicas e jurídicas dos avanços estatais sobre a atividade econômica.
Seu Capítulo II, formatado como uma “Declaração de Direitos de Liberdade Econômica”, remete propositalmente a diplomas liberais consagrados, como a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, e seu artigo 3º elenca dez incisos que reforçam de forma significativa o papel do cidadão comum como agente econômico, no exercício da livre iniciativa, pautado pelo laissez faire.
Tal rol de direitos, oponíveis que são em face de quem os pretenda violar, representam o reconhecimento estatal da importância da manutenção de um ambiente negocial livre, pautado pela boa-fé e pela confiança. Da forma como foram redigidos, todavia, são, de um modo geral, bastante subjetivos e ainda sujeitos a exceções, como se verifica pela vasta utilização de expressões como: “respeitada a legislação vigente”; “ressalvadas as hipóteses expressamente vedadas na lei”; ou “exceto se houver expressa disposição legal em contrário”.
Desse modo, representam uma mudança de paradigma significativa, sobretudo a nível federal, mas ainda carecem de real efetividade pela necessidade de regulamentação de muitos de seus termos. Ainda, mesmo as salvaguardas de aplicação imediata deverão ser objeto de extensas mudanças de procedimento nos níveis mais próximos à população, como em cartórios e juntas comerciais, o que não deve ocorrer de imediato.
O Capítulo III da MPV 881, por sua vez, é direcionado à administração pública e é estruturado como uma garantia, instrumentalizando a salvaguarda dos interesses empresariais ao impor limites ao poder regulamentar do Estado. Possui nove incisos em seu artigo 4º, que detalham condutas indesejadas a serem evitadas pelo ente estatal competente.
Esse segmento do diploma normativo será especialmente caro ao direito concorrencial, vez que mais da metade das condutas elencadas lhe dizem respeito. Outro setor ali alcançado, e que está na crista da onda, é o de regulamentação de novas tecnologias, sobretudo a prática legislativa estadual e municipal, como se vislumbra no art. 4º, V, buscando evitar o abuso de poder regulatório que vise:
V – redigir enunciados que impeçam ou retardem a inovação e a adoção de novas tecnologias, processos ou modelos de negócios, ressalvadas as situações consideradas em regulamento como de alto risco;
Complementarmente, tem-se o Capítulo IV, que trata da Análise de Impacto Regulatório e vincula a edição de normas a tal análise, a ser realizada sob um viés econômico e tratará especificamente dos eventuais efeitos que a norma poderia vir a ter.
Mais uma vez, é medida que dependerá de regulamento a ser editado, de modo que não surtirá efeitos imediatos. Ainda, não será obrigatória em todos os casos. Todavia, é bastante abrangente em sua aplicabilidade, vez que atinge não apenas a administração pública direta, mas também a indireta, em autarquias e fundações.
Finalmente, o Capítulo V da medida elenca as alterações legislativas operadas pela MPV 881, que são bastante abrangentes e modificam diplomas normativos importantes, como o Código Civil Brasileiro.
Desde logo é imperativo reconhecer o objetivo de mudança paradigmática da Medida Provisória 881/2019, que visa ir muito além de alterações normativas e estruturar um novo arcabouço jurídico para a atividade econômica nacional. Resta avaliar a factibilidade de algumas de suas disposições e a sustentabilidade de sua forma de realização.
Portanto, nos próximos dias publicaremos alguns artigos relacionados à MPV 881, em que aprofundaremos alguns temas relevantes e apresentaremos um comparativo das modificações legislativas de forma didática, de modo a compreender a extensão das mudanças.
Até lá.