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“Por sua conta e risco”? Os contratos de obras públicas e o desafio da adequada repartição de riscos entre a Administração Pública e o particular

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PedroCardosoPor Luiz Augusto da Silva – Advogado Mestrando em Direito do Estado pela UFPR

A história do contrato administrativo caminha junto com a história dos riscos. Ou melhor, da repartição dos riscos: sempre que a Administração Pública e os particulares se engajam num vínculo contratual, surge o problema de definir quem deve assumir quais riscos, e por quê. Nos contratos públicos, a questão dos riscos assume relevância especial, já que o particular faz jus à manutenção do equilíbrio econômico-financeiro do contrato – isto é, impõe-se o respeito à equivalência entre encargos e remuneração, entre ônus e bônus, negociada pelas partes no momento original da contratação¹.

Nos contratos para a realização de obras públicas, são diversos os riscos aos quais as partes estão sujeitas, e que podem impactar na equação econômico-financeira do negócio. Pense-se, por exemplo, nos riscos que afetam um contrato para a implantação de uma grande usina hidrelétrica, empreendimento complexo por excelência: riscos relacionados às condições geológicas do local da obra; intempéries da natureza que afetam o cronograma contratual; inconsistências de projeto somente constatadas na fase de execução; atraso na emissão de licenças pelos órgãos ambientais; necessidade de desapropriação de imóveis de terceiros… E por aí vai.

A solução tradicional oferecida pelo Direito Administrativo consiste na chamada “teoria das áleas”. Fala-se em (i) álea empresarial (são os riscos mercadológicos “normais” à vida de qualquer empresário, p. ex., flutuações de preços de insumos), (ii) álea administrativa (fatos imputáveis à Administração, tais como a alteração unilateral do contrato, ou medidas estatais de ordem geral como regulações e tributos, além do descumprimento de obrigações contratuais pelo próprio Poder Público contratante) e, por fim, (iii) em álea econômica (acontecimentos externos ao contrato, imprevisíveis ou previsíveis porém de consequências incalculáveis, que geram desequilíbrio no pacto)².

É essa a lógica de repartição de riscos predominantemente consagrada pela nossa Lei Geral de Licitações e Contratos, a velha Lei n°. 8.666/93 (art. 65, II, “d”)³. No fundo, o que se tem é uma alocação posterior e quase aleatória dos riscos contratuais: investiga-se qual das partes teria assumido um determinado risco só depois que o prejuízo já se concretizou, à luz de standards genéricos e abstratos fixados pela lei.

A insuficiência do modelo clássico é clara. Por certo contribuiu e tem contribuído bastante para o que já se chamou do próprio “fracasso do contrato administrativo”. Afinal, a teoria das áleas é pouco preditiva num duplo aspecto: tanto dos riscos efetivamente envolvidos no contrato específico, quanto das condutas exigidas das partes no seu gerenciamento. O que dá ensejo a infindáveis discussões, que mais cedo ou mais tarde desembocam em litígios perante o Poder Judiciário.

No esforço de corrigir esse desvio de rota, a tendência contemporânea em matéria de contratos administrativos – no que se incluem os contratos de obras públicas – vem sendo o uso da chamada matriz de riscos. Uma matriz de riscos nada mais é do que uma técnica de gestão dos riscos: por meio dela, efetua-se a alocação anterior e específica, consensualmente pelas próprias partes, de todos os riscos antecipáveis, logo no momento da assinatura do contrato – além de se estabelecer as respectivas responsabilidades e providências a serem adotadas no caso de os riscos se materializarem em prejuízos.

Alguns exemplos demonstram a assertiva. A Lei das Parcerias Público-Privadas (Lei n°. 11.079/04), quebrando com a lógica da Lei n°. 8.666/93, elenca a “repartição objetiva de riscos entre as partes” (art. 4°, VI) como diretriz das parcerias. O recente Estatuto Jurídico das Empresas Estatais (Lei n°. 13.303/16) – que, aliás, entra em pleno vigor no próximo dia 30 de junho – no capítulo que trata do regime jurídico dos contratos firmados por essas empresas, impõe como cláusula necessária do contrato, justamente, a “matriz de riscos” (art. 69, inc. X). Enfim, o projeto de nova lei de licitações e contratos – o PL n°. 6.814/2017, atualmente em trâmite na Câmara dos Deputados – busca generalizar a prática da matriz de risco a todas as modalidades de contratações administrativas (art. 19 do PL).

Mas isso não significa o fim das dificuldades. Aliás, é aqui que surge um dos questionamentos mais importantes – e cuja resposta é das mais desafiadoras – para o desenho inteligente e inovador dos contratos administrativos de obras públicas: quais critérios devem embasar a repartição de riscos entre as partes, a ser fixada na matriz?

O princípio geral, de índole econômica, é o de que deve assumir um dado risco a parte que está em melhores condições de gerencia-lo, mitiga-lo ou até mesmo elimina-lo a um custo menor. Cria-se, com isso, um sistema de incentivos no interior da relação contratual para que as partes administrem os riscos da melhor forma possível – em proveito da boa execução do contrato. Deve ser considerado o histórico de contratações similares realizados pelo ente público, sobretudo em obras de natureza similar, a fim de que a matriz de riscos reflita a experiência acumulada de contratos anteriores.

Sem dúvida, não se trata de tarefa simples. Sendo o contrato uma realidade eminentemente dinâmica, cada empreendimento apresentará suas próprias exigências quanto à distribuição dos riscos. Por isso, a equipe da Poletto & Possamai se prontifica para prestar a assessoria jurídica necessária nesses tipos de contratações.

[1] JUSTEN FILHO, Marçal. Concessão de serviço público e equação econômico-financeira dinâmica. Revista de Direito Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, ano 16, n. 61, pp. 171-191, jan./mar. 2018, p. 173.

[2] ALMEIDA, Fernando Dias Menezes de. Contrato Administrativo. São Paulo: Quartier Latin, 2012, pp. 221-222.

[3] Art. 65. Os contratos regidos por esta Lei poderão ser alterados, com as devidas justificativas, nos seguintes casos: […] I – por acordo das partes: […] para restabelecer a relação que as partes pactuaram inicialmente entre os encargos do contratado e a retribuição da administração para a justa remuneração da obra, serviço ou fornecimento, objetivando a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato, na hipótese de sobrevirem fatos imprevisíveis, ou previsíveis porém de consequências incalculáveis, retardadores ou impeditivos da execução do ajustado, ou, ainda, em caso de força maior, caso fortuito ou fato do príncipe, configurando álea econômica extraordinária e extracontratual.

[4] NIEBUHR, Joel de Menezes. O Fracasso do Contrato Administrativo. Blog Direito do Estado. Disponível em: <https://www.direitodoestado.com.br/colunistas/joel-de-menezes-niebuhr/o-fracasso-do-contrato-administrativo> Acesso em 31/05/2018.

[5] Segundo o conceito consagrado na ISO 31.000, “gestão de riscos” compreende “as atividades coordenadas para dirigir e controlar uma organização que se refere a riscos”.

[6] Tivemos a oportunidade, também neste espaço, de tecer algumas breves considerações sobre o tema do novo regime contratual das empresas estatais: SILVA, Luiz Augusto da. O regime contratual das empresas estatais: o que mudou com a Lei 13.303/16 (“Estatuto Jurídico das Empresas Estatais”). Feed de Notícias da Poletto & Possamai Sociedade de Advogados. Disponível em: <https://poletto.adv.br/o-regime-contratual-das-empresas-estatais-o-que-mudou-com-a-lei-n-13-30316-estatuto-juridico-das-empresas-estatais-por-luiz-augusto-da-silva/> Acesso em 31/05/2018.

[7] NÓBREGA, Marcos. Direito da Infraestrutura. São Paulo: Quartier Latin, 2011, p. 129.

[8] GARCIA, Flávio Amaral. A imprevisão na previsão e os contratos concessionais. In: MOREIRA, Egon Bockmann (org.). Contratos administrativos, equilíbrio econômico-financeiro e a taxa interna de retorno: a lógica das concessões e parcerias público-privadas. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 114.

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