
Estudo sobre o cenário jurídico envolvendo o auxílio-moradia na residência médica e os desafios para as instituições diante da jurisprudência atual.
A residência médica, conforme disciplinada pela Lei nº 6.932/81¹, é qualificada como modalidade de ensino de pós-graduação lato sensu, destinada exclusivamente aos médicos, sob a forma de especialização. Nesse contexto, a atuação do médico residente ocorre em regime de dedicação exclusiva, com elevada carga horária prática e teórica, que exige do profissional um comprometimento integral ao longo da sua especialização.
A fim de conservar os meios adequados para o desempenho das atividades dos médicos residentes, o artigo 4º da Lei nº 6.932/81 prevê benefícios aos participantes dos Programas de Residência Médica imputando à instituição de saúde responsável pelo programa de residência o dever de oferecer aos residentes (i) condições adequadas para repouso e higiene pessoal durante os plantões; (ii) alimentação e (iii) moradia, conforme estabelecido em regulamento, tudo na forma do §5º do citado artigo.
Diante desse contexto, o presente artigo tem por objetivo analisar os reflexos jurídicos decorrentes do descumprimento do dever de fornecimento in natura do auxílio-moradia aos médicos residentes por parte das instituições responsáveis pelos programas de residência médica.
A obrigação legal de fornecimento de moradia in natura aos médicos residentes está prevista no artigo 4º, §5º, inciso III, da Lei nº 6.932/81, todavia, o dispositivo legal indica que o benefício será fornecido conforme estabelecido em regulamento. Tal situação acabou por gerar incentivo ao descumprimento do dever legal, na medida em que permitiu às instituições médicas negarem moradia aos residentes, ao amparo da omissão dos responsáveis em regulamentar a matéria.
Não obstante, fato é que existe o dever legal de oferta de moradia aos médicos residentes e estes não podem ser privados de benefício essencial à participação no programa formativo, em razão da contínua omissão quanto à regulamentação da matéria.
Este é o posicionamento consolidado da jurisprudência, que entende que, não sendo satisfeito o direito à moradia mediante prestação in natura, nasce a obrigação da instituição responsável pelo Programa de Residência Médica de reparar a omissão mediante indenização em dinheiro, convertendo-se a obrigação de fazer em perdas e danos, vide artigos 499 do CPC² e 247 do CC³.
A Turma Nacional de Unificação, em 07 de agosto de 2024, decidiu a questão sob o Tema nº 325⁴, definindo que, quanto ao “descumprimento do art. 4º, § 5º da Lei 6.932/1981”, quando ausente o fornecimento da moradia in natura, é devido auxílio-moradia, fixado em 30% (trinta por cento) do valor bruto da bolsa mensal, independentemente de prévio requerimento administrativo ou de comprovação de renda pelo médico residente.
Isto porque, durante o período de vigência do programa, os residentes fazem jus a uma bolsa-auxílio mensal – art. 4ª, caput, da Lei nº 6.932/81 –, cujo valor é regulamentado por portarias interministeriais. Entre os anos de 2021 e 2025, os valores praticados foram de R$ 3.330,43 a R$ 4.106,09, conforme as atualizações previstas nas Portarias Interministeriais nº 3/2016 e nº 9/2021, respectivamente. Sendo assim, em caso de não observância do dever legal de prestar o auxílio-moradia in natura, é devido o pagamento de indenização substitutiva, no valor de 30% (trinta por cento) do valor bruto da bolsa-auxílio, acima mencionada, parâmetro definido para otimizar a quantificação da indenização a que fazem jus os médicos residentes que tiveram seu direito violado.
Em que pese as instituições responsáveis pelos programas defendam que o auxílio-moradia estaria obstado pela falta de regulamentação específica, este subterfúgio para negar o direto garantido por lei restou afastado pelo entendimento consagrado no Tema nº 325 do TNU.
Destaca-se, ainda, que a obrigação do fornecimento à moradia não depende da comprovação de requerimento administrativo prévio e da comprovação dos custos com moradia ao longo do Programa de Residência, como entende a jurisprudência⁵.
Vale pontuar, ainda, que eventual fornecimento de local para descanso, durante os plantões, não se confunde com o dever de fornecimento de moradia. Afinal, por definição, o alojamento é utilizado somente para “repouso ou higiene pessoal durante as jornadas dos plantões, exercidos pelos médicos residentes”. Ou seja, o local para descanso (alojamento) não se confunde com o fornecimento de moradia (tanto que ambos os benefícios estão previstos em diferentes incisos do dispositivo legal).
A conclusão é clara: deve ser garantido o auxílio-moradia aos médicos residentes, sendo que a ausência da oferta in natura gera a conversão da obrigação no dever de prover indenização substitutiva pelas instituições responsáveis pelos programas.
Diante desse cenário, médicos residentes que pretendem reivindicar o benefício judicialmente devem observar o prazo prescricional. Para casos vinculados a instituições públicas, tais como hospitais universitários federais, em regra, aplica-se o prazo prescricional quinquenal, disposto no art. 1ª do Decreto nº 20.910/32. Por sua vez, tratando-se de programas de residência privados, o prazo é decenal, conforme art. 205 do Código Civil.
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Referências
¹ BRASIL. Lei nº 6.932, de 07 de julho de 1981, dispõe sobre as atividades do médico residente e dá outras providências.
² Art. 499 do Código de Processo Civil: “A obrigação somente será convertida em perdas e danos se o autor o requerer ou se impossível a tutela específica ou a obtenção de tutela pelo resultado prático equivalente”
³ Art. 247 do Código Civil: “Incorre na obrigação de indenizar perdas e danos o devedor que recusar a prestação a ele só imposta, ou só por ele exeqüível.”
⁴ Tema nº 325 TNU “Até que sobrevenha a regulamentação do inciso III do §5º do art. 4º da Lei 6.932/81, e independentemente de prévio requerimento administrativo e da renda, o médico residente possui direito ao auxílio-moradia, fixado em 30% do valor bruto da bolsa mensal, se a ele não for fornecida in natura a moradia.”
⁵ TNU, 50014681420144047100, JUIZ FEDERAL GERSON LUIZ ROCHA, DOU 04/10/2016.