
No contexto jurídico brasileiro, reconhecer judicialmente uma união estável após a morte de um dos companheiros — o que chamamos de reconhecimento post mortem — tem se tornado uma questão cada vez mais relevante. Isso porque, muitas vezes, é essa medida que possibilita ao parceiro sobrevivente acessar direitos importantes, como benefícios previdenciários, seguros de vida e outros efeitos patrimoniais que decorrem da vida a dois. Esse tipo de ação judicial ganha força justamente quando não houve, em vida, um registro formal da união. Nessas situações, cabe ao Judiciário a delicada tarefa de confirmar que aquela convivência existiu de fato — uma convivência marcada por estabilidade, durabilidade e intenção de constituir família. Trata-se, portanto, de uma etapa essencial para que a pessoa que ficou possa ver reconhecida a sua história e, mais do que isso, possa fazer valer os direitos que dela decorrem.
A união estável é, antes de tudo, uma construção afetiva: duas pessoas que se unem na vida, nos planos, nos desafios cotidianos, na esperança por um futuro juntas. Muitas vezes esse laço ocorre espontaneamente, sem conferências ou registros formais, mas com um significado profundo. A Constituição Federal de 1988, conhecendo a importância da convivência, em seu art. 226 , §3º, elevando a união estável à posição de família, garantindo – lhe a mesma dignidade jurídica que as demais formas da constituição da família. O Código Civil, em seu art. 1.723, complementa esta proteção, definindo – a como convivência pública, contínua e rígida, sendo definida como objetivo para constituição de família. Mas, quando essa convivência não foi formalizada em vida, seja por escritura pública ou por contrato particular, o reconhecimento judicial pode transformar – se em um verdadeiro dilema, especialmente após o falecimento de um dos conjugados. É nesse momento que surge a necessidade de ingressar com uma ação declaratória de reconhecimento de união estável post mortem, geralmente interposta contra os herdeiros do falecido.
Para que essa demanda seja aceita, é essencial apresentar um conjunto probatório sólido e convincente. Comprovantes de residência em comum, contas bancárias conjuntas, apólices de seguro, declarações de imposto de renda e fotos são elementos que ajudam a montar e comprovar essa história. Os testemunhos de parentes, amigos e vizinhos desempenham papel importante para mostrar a convicção e a amizade entre os companheiros. Esse processo é, no fundo, uma busca por justiça, pelo reconhecimento de uma vida construída a dois conforme já assegurado pelo ordenamento jurídico brasileiro.
No setor do direito securitário, a obtenção de sentença judicial que declara a união estável é fundamental para que o companheiro sobrevivente possa pleitear apólices de seguros de vida, seja nos casos em que o de cujus não seja indicado de forma expressa como beneficiários, como nos casos em que a condição tenha sido de certo modo contestado. Mesmo que a previdência não tenha a menção do companheiro como beneficiário, a polícia brasileira declarou haver abertura para que essa figura possa ser inserida, um entendimento bastante aceito pela doutrina. Maria Berenice Dias esclarece que:
Mesmo na ausência de previsão expressa na apólice, tem-se admitido que o companheiro sobrevivente, na constância da união estável, seja reconhecido como beneficiário do seguro de vida, com base nos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da proteção à família.
Esse entendimento de origem é a ideia de cuidado mútuo e proteção recíproca, que é característica das relações familiares. Portanto, a interpretação dos contratos de seguro de vida deve respeitar os princípios da dignidade da pessoa humana e de proteção à família — os fundamentos que orientam todo o nosso ordenamento jurídico. Além desses seguros privados, deve-se lembrar que ainda poderá ocorrer ao companheiro sobrevivente o direito a pensão por morte, liberada pelo Regime Geral de Previdência Social (RGPS), por força da Lei nº 8.213/91. Para o reconhecimento desse benefício, é necessário cumprir os requisitos legais, como o tempo mínimo de contribuição (carência) e a comprovação da união estável nos dois anos anteriores ao falecimento do segurado.
Do mesmo modo, é possível requerer judicialmente o levantamento de valores relacionados ao FGTS, ao PIS/PASEP e às verbas rescisórias que eram devidas ao falecido. Nesses casos, o pagamento poderá ser autorizado mediante alvará judicial, caso seja formalmente reconhecida a união estável. Isso revela como a prova legal da relação é um dos elementos essenciais para o exercício de diversos direitos patrimoniais e providenciá-los aos rios decorrentes da convivência.
Efetivamente, é necessário lembrar que, mesmo considerando o reconhecimento post mortem da união estável como uma alternativa jurídica, essa não está isenta de barreiras. O fato de poder surgir contestação por herdeiros diversos, em várias situações, poderá acarretar um custo significativo, tanto em tempo quanto em despesas, devido à dificuldade na produção da prova ao longo do processo. Neste contexto de possível resistência, recomenda-se a formalização da união estável em vida — preferencialmente por meio de escritura pública — como uma orientação ou sugestão. Tal medida não apenas pode reduzir futuras disputas e desentendimentos, mas também ampliar a segurança jurídica do casal, proporcionando-lhes maior tranquilidade e previsibilidade quanto aos direitos e obrigações referentes à sua união.
Dessa forma, impõe-se o trabalho dos especialistas jurídicos. O auxílio é necessário não só na fase de consultoria, fornecendo orientações sobre a formalização e os direitos da união estável, mas também durante a fase disputativa, por meio do protocolo do pedido de reconhecimento judicial e garantindo o subsequente reconhecimento dos direitos do sobrevivente. O incremento substancial das ações envolvendo esta questão é uma evidência da demanda crescente por um tratamento que não seja apenas técnico, mas também muito sensível a cada caso. Para tanto, é necessário que o rito associe uma rigorosa produção de prova durante o desenrolar do processo a um conhecimento técnico apurado, aplicado às particularidades de cada relação jurídica, garantindo-se, assim, a realização da justiça e a proteção integral da entidade familiar.
¹ GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil: Direito de Família. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2020.
² BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Art. 226, §3º. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/topicos/10645006/paragrafo-3-artigo-226-da-constituicao-federal-de-1988. Acesso em: 5 mar. 2025.
³ BRASIL. Código Civil, Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Art. 1.723. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/topicos/10613814/art-1723-da-lei-n-10406-de-10-de-janeiro-de-2002. Acesso em: 5 mar. 2025.
⁴ FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: Famílias. 11. ed. Salvador: Juspodivm, 2022.
⁵ DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 12. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021, p. 446
⁶ BRASIL. Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras providências. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8213cons.htm. Acesso em: 5 mar. 2025.
⁷ DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro – Volume 5: Direito de Família. 34. ed. São Paulo: Saraiva, 2021.