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Nova divergência no STJ: quando o crédito do segurador entra na recuperação judicial?

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Nova divergência no STJ: quando o crédito do segurador entra na recuperação judicial?

Dissenso revela problema de encaixe normativo entre Código Civil, Lei de Falências e a operação peculiar do seguro-garantia

O Direito dos Seguros, apesar de sua relevância econômica, ainda tem lacunas em sua interface com temas empresariais. Em dois textos anteriores no JOTA, vimos alguns desafios para o Superior Tribunal de Justiça (STJ) ao tratar de eficácia de cláusulas de arbitragem ao segurador (leia aqui e aqui).

Agora, mais uma controvérsia está sob o crivo do STJ, desta vez no diálogo entre o Direito dos Seguros e o Direito Falimentar. É a seguinte: quando o crédito do segurador que pagou uma dívida da empresa fica sujeito ao plano de recuperação judicial?

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A dúvida se coloca nos seguros-garantia de contratos e de dívidas nas execuções fiscais. O problema está no art. 49 da Lei de Falências e Recuperações Judiciais (Lei 11.101/2005), que diz: “Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos”. Logo, dívidas que a empresa contrai depois do pedido são extraconcursais – e ela deve pagá-las normalmente.

A pergunta-chave é: quando o crédito do segurador surge para os fins do art. 49 da Lei Falimentar? Por exemplo: em 2015, construtora assina contrato de empreitada para ampliar um parque industrial e garante suas obrigações com apólice de seguro-garantia; em 2016, ela abandona a obra e pede recuperação judicial; em 2017 o dono da obra, segurado da apólice, avisa o sinistro para que a seguradora cubra os prejuízos; a seguradora indeniza o segurado no início de 2018.

Ela tem então o direito de exigir da construtora que a reembolse por esse valor. A seguradora está sujeita ao plano do soerguimento, ou seu crédito seria extraconcursal? Veja-se: o contrato de seguro é anterior ao pedido, mas tanto o sinistro quanto o pagamento da indenização – que torna o reembolso exigível – são posteriores.

O STJ diverge exatamente nesse ponto. Ambas as Turmas de Direito Privado (3ª e 4ª) oscilaram nos últimos anos entre as duas respostas. Este texto sustenta que a raiz da contradição está nas opiniões distintas dos ministros sobre como enquadrar o seguro-garantia em alguns conceitos clássicos do Direito das Obrigações.

O ponto de partida: a tese fixada no Tema 1.051 do STJ

Os julgados do STJ assumem um ponto de partida em comum. Ao decidir o Tema 1.051 da repercussão geral, a Seção de Direito Privado fixou a seguinte tese jurídica: “Para o fim de submissão aos efeitos da recuperação judicial, considera-se que a existência do crédito é determinada pela data em que ocorreu o seu fato gerador”. Até ali, o problema era saber qual data conta para incluir um crédito na recuperação judicial: se a data da sentença que o declara ou a do fato empírico que deu origem a ele, ocorrido no plano do direito material. O STJ entendeu que essa segunda resposta é a correta.

Nos anos seguintes, o enunciado da tese virou se descolou dos precedentes de base e virou, ele mesmo, um texto abstrato sujeito a dúvidas interpretativas. O que criou outro problema prático: definir qual é o “fato gerador” de certa dívida em cada caso concreto, dependendo da relação jurídica de base. Esse é o ponto crucial nos seguros-garantia. Ao indenizar o segurado, contratante da empresa recuperanda, como fica a situação jurídica da seguradora? Ela assume a posição de credora numa relação jurídico-obrigacional que já existia – e que, por isso, está sujeita ao plano? Ou nasce para ela um crédito novo em face do devedor, isto é, uma nova relação obrigacional?

3ª Turma: o que vale é a data do crédito originário – a seguradora assume um crédito que já existia

A 3ª Turma considera que o marco temporal relevante é a data em que a empresa devedora descumpre a obrigação garantida. Ao pedir o reembolso da recuperanda, a seguradora apenas se tornou a nova credora de dívida anterior entre ela e o segurado (credor original).

Para concluir desse modo, a 3ª Turma usa o conceito de “sub-rogação”. No Direito das Obrigações, sub-rogar quer dizer substituir: uma pessoa por outra ou uma coisa por outra. No problema analisado aqui, a noção remete a um modo peculiar de pagamento: o chamado pagamento com sub-rogação (arts. 346 a 351 do Código Civil).

Segundo o art. 349 do Código: “A sub-rogação transfere ao novo credor todos os direitos, ações, privilégios e garantias do primitivo, em relação à dívida, contra o devedor principal e os fiadores”. A relação jurídica obrigacional sobrevive, mas seu polo ativo muda: o terceiro que adimpliu no lugar do devedor originário se torna o novo credor dele. Para os contratos de seguro em geral, o art. 786 do Código Civil diz: “Paga a indenização, o segurador sub-roga-se, nos limites do valor respectivo, nos direitos e ações que competirem ao segurado contra o autor do dano”.

Para a 3ª Turma, o crédito em si, tomado objetivamente, já existia na data do pedido da recuperação judicial. A sub-rogação transfere ao terceiro o mesmo crédito, com todas as suas características. Logo, se ele se incluía na recuperação judicial quando estava “nas mãos” do credor original, ele continua incluído quando é transferido à seguradora[1].

4ª Turma: o que vale é a data em que o risco do seguro se materializa

A 4ª Turma aplica outro raciocínio. Segundo o entendimento mais atual do órgão, a relação jurídica entre o segurador e a recuperanda só nasce com o sinistro. É nesse momento que o risco se materializa, dando eficácia à obrigação da seguradora de indenizar o segurado e de exigir o reembolso da devedora. Nesse argumento, é indiferente se o contrato garantido foi assinado antes do pedido de recuperação judicial. O que vale é a data do sinistro: se ele ocorreu depois, o crédito da seguradora é extraconcursal, pois não “existia na data do pedido” (art. 49, Lei de Falências).

Veja-se que, diferente da 3ª Turma, a categoria dogmática relevante aqui é a das condições suspensivas (arts. 121 e 125 do Código Civil). A condição é elemento acidental do negócio jurídico que subordina algum de seus efeitos a acontecimento futuro e incerto. A jurisprudência da 4ª Turma traça a diferença entre duas existências jurídicas: de um lado, a do contrato de seguro, e de outro, a do crédito da seguradora contra a empresa. Embora o seguro já exista e seja válido, um de seus efeitos fica contido até que o sinistro aconteça – ele é uma condição suspensiva do direito de regresso da seguradora[2].

Esse entendimento decorre de julgado anterior da 2ª Seção do STJ, em que o tribunal fixou a autonomia entre as três relações jurídico-contratuais envolvidas no seguro-garantia: a relação entre contratante e empresa recuperanda (devedora), entre seguradora e o contratante (segurado) e entre seguradora e a empresa devedora (obrigação de reembolso)[3].

O que esperar do STJ a partir daqui

É curioso notar como a jurisprudência de cada Turma se inverteu ao longo dos anos. A 3ª Turma, que hoje entende que o que vale é a data do contrato originário, até 2020 tinha precedentes no sentido contrário[4]. Já a 4ª Turma, cuja jurisprudência atual é por considerar a data do sinistro como marco relevante, até 2023 aderia à tese oposta e que hoje domina na 3ª Turma[5]. Essa mudança jurisprudencial abrupta em menos de cinco anos, nos dois órgãos com competência sobre Direito Privado do STJ, mostra que o tema ainda merece ser debatido mais a fundo.

Mais: ambas as interpretações do STJ devem ser refinadas para evitar contrassensos no futuro. Se prevalecer a linha da 3ª Turma, o julgador terá que analisar bem a natureza do crédito originário para definir se ele objetivamente se submete à recuperação judicial, independentemente de quem seja o credor. O ponto é especialmente relevante para seguros-garantia de obrigações fiscais, já que créditos fazendários, tributários ou não, ficam fora do plano de soerguimento conforme o próprio STJ definiu em 2021[6].

Por coerência do sistema, se a sub-rogação transmite o mesmo crédito, com todas as suas qualidades e defeitos, então o segurador que indeniza um crédito extraconcursal não se submete ao plano – ainda que o contrato de seguro tenha sido firmado antes do pedido. Essa premissa ficou à margem dos julgados.

A visão da 4ª Turma também deve ser harmonizada com outros precedentes sobre a situação jurídica dos garantidores em geral, não só das seguradoras. Exemplo: para a fiança bancária, que cumpre função parecida à do seguro-garantia nos contratos das empresas, a Turma já decidiu que o fato gerador do crédito do banco é a data em que ele de fato paga o credor da recuperanda: é esse pagamento que lhe dá direito de exigir o reembolso da devedora[7].

Essa conclusão destoa do acórdão sobre seguro-garantia – segundo o qual a data importante é a do sinistro – sem razão jurídica aparente. Nos dois tipos de garantia, o garantidor (banco ou seguradora) só tem pretensão regressiva contra a empresa depois que paga o contratante original, tornando-se só aí o novo credor. Esse dado pode ser fundamental na prática: entre o segurado avisar o sinistro e a seguradora indenizá-lo costuma passar algum tempo, às vezes meses ou anos dependendo da complexidade do sinistro. Nesse meio tempo, a empresa devedora pode entrar com recuperação judicial.

Conclusão

O dissenso no STJ revela um problema de encaixe normativo entre Código Civil, Lei de Falências e a operação peculiar do seguro-garantia – que foge à lógica rígida dos conceitos tradicionais de Direito das Obrigações.

Do ponto de vista econômico, a orientação do tribunal definirá quem assume o risco da insolvência das empresas por mais tempo: se é o credor originário ou o segurador. O entendimento da 4ª Turma mantém esse risco sobre os credores originais, como contratantes ou o fisco; já a 3ª Turma o transfere parcialmente aos garantidores. A resposta certamente afeta o cálculo dos prêmios no seguro-garantia, pois interfere na perspectiva das seguradoras de recuperar o valor das indenizações.

Cabe agora torcer que a Seção de Direito Privado do STJ julgue a matéria via embargos de divergência, unificando enfim a jurisprudência das Turmas. Independente da linha jurisprudencial que vença, a prioridade hoje é encerrar a incerteza jurídica. A coerência do Direito é a pedra angular para que o sistema de garantias funcione na recuperação judicial.


[1] STJ, REsp 2.123.959-GO, Terceira Turma, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, DJe 28.08.2024 (“[…] se o credor originário tinha um crédito submetido aos efeitos da recuperação judicial, é isso o que ele tem a transferir ao sub-rogado. Não se trata de uma característica ligada à pessoa do sujeito sucedido, ou ao momento do pagamento, mas ao próprio direito de crédito, que é repassado com seus defeitos e qualidades.”).

[2] STJ, AgInt no AREsp 1.556.044-SP, Quarta Turma, Rel. Min. Raul Araújo, DJe 02.08.2024 (“[…] não tendo havido o implemento da condição suspensiva – sinistro – em momento anterior ao pedido de recuperação judicial, não há falar em submissão do credor aos efeitos da recuperação judicial.”).

[3] STJ, CC 161.667/GO, Segunda Seção, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, DJe 31.08.2020.

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