Por Louvaine Locks¹ – Advogada Especialista em Direito Processual Civil
O mercado de seguros brasileiro aguarda por mais de uma década – sendo mais preciso há quatorze anos² – por uma definição se o Projeto da Lei de Seguros “vingará” e se integrará ao conjunto de normas vigentes no país.
Após diversas alterações no texto originalmente apresentado, o projeto foi arquivado e desarquivado em algumas oportunidades, mas finalmente foi aprovado no ano passado pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara de Deputados, sendo remetido na sequência ao Senado Federal (PLC nº 29/2017)³, aguardando o desenrolar de sua tramitação em tal órgão.
Caso seja promulgado, tal projeto se tornará o conjunto de normas gerais a respeito do seguro privado, tratando também de questões relacionadas ao resseguro, retrocessão, cosseguro, regulação de sinistro, corretagem de seguros, dentre outras. Em suma, o texto contido no referido projeto possui abrangência bastante ampla e propõe revogar outras normas atualmente vigentes que tratam desta modalidade de contrato e relações dele conexas, como o capítulo específico do Código Civil que trata do seguro e as normas relativas ao regime jurídico da prescrição aplicável.
Ocorre, no entanto, que apesar do extenso período em que tramita e de todos os mecanismos legais disponíveis para se garantir a criação de leis compatíveis com a Constituição Federal e com as demais leis federais vigentes que não serão revogadas pela nova norma, o PLC nº 29/2017 ainda possui muitos pontos obscuros que despertam preocupações, posto que certamente uma lei de tal magnitude impactará diretamente no mercado e nas suas atividades, responsáveis por movimentar parcela considerável do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro⁴.
Como não caberia aqui esgotar todos os pontos polêmicos, o presente texto se limitará a tratar de dois possíveis, mas relevantes, conflitos entre seu conteúdo e outras leis federais e dispositivos constitucionais.
O primeiro deles se refere ao artigo 9º, §1º, inciso I, do PLC nº 29/2017, em que se reserva a aplicação exclusiva da lei brasileira aos contratos de seguro firmados por seguradoras autorizadas a atuar no país⁵. Igualmente, a aplicação da legislação nacional é privilegiada no artigo 63 do PLC nº 29/2017, determinando que mesmo diante de métodos alternativos de resolução de conflitos eleito pelas partes⁶, deverão ser observados os procedimentos e as regras brasileiras⁷.
Embora se sustente argumentos favoráveis aos referidos dispositivos, não há como se negar a aparente incompatibilidade dos textos com o que dispõe atualmente o artigo 2º da Lei nº 9307/1996 (Lei de Arbitragem)⁸, o qual consagra a liberdade, não absoluta por óbvio, das partes de escolherem as regras de direito ou de equidadeque irão reger eventual arbitragem.
Desta maneira, a autonomia da vontade contratual e a livre iniciativa são conceitos imperativos em tal regramento e princípios consagrados na Constituição Federal, em especial no artigo 170⁹.
Por possuir papel de destaque como método alternativo de resolução de conflitos, a arbitragem também tem sido uma opção em contratos de seguro e relações conexas, especialmente quando envolve operações com seguradoras estrangeiras e de grandes riscos. A prática evidencia que a sua escolha reflete até mesmo no valor do prêmio a ser pago por aquele que contrata o seguro e no interesse do agente segurador em aceitar ou não o risco dele decorrente.
Assim, da forma como posto, o texto do PLC nº 29/2017, além de ir de encontro aos preceitos da livre inciativa e da autonomia da vontade, poderá resultar em um retrocesso, pois representa um verdadeiro óbice a livre escolha das partes contratantes quanto as cláusulas que melhor atendem aos seus interesses.
Por outro lado, o PLC nº 29/2017 traz em seu bojo algumas regras relacionadas cosseguro¹⁰. Neste aspecto, além avançar em questões que poderiam ser simplesmente convencionadas entre as seguradoras envolvidas, como a necessidade ou não da seguradora acionada em demanda ajuizada de promover a notificação judicial ou extrajudicial das demais para dar ciência do fato, novamente interferindo na autonomia da vontade contratual, vai além e trata até mesmo dos efeitos de uma decisão judicial ou arbitral prolatada em face de uma das cosseguradoras de uma determinada apólice em relação às demais.
Segundo o que propõe o artigo 37, §4º, do PLC nº 29/2017, a sentença proferida contra a seguradora líder do contrato de seguro fará coisa julgada em relação às demais, as quais poderão ser todas executadas no mesmo processo, do qual sequer participaram¹¹.
Quer dizer, ainda que não tenham participado do processo e não tenha sido condenadas pela sentença, e independentemente da natureza jurídica da demanda, as cosseguradoras poderão sofrer com a constrição de bens para fazer frente ao disposto na decisão, o que é de difícil assimilação considerando a regra geral da eficácia Inter partes (artigos 506 do CPC¹² e 31 da Lei nº 9.307/1996¹³) e não Erga omnes das sentenças judiciais e arbitrais¹⁴.
Não bastasse, o art. 5º, LIV e LV, da Constituição Federal estabelece como garantia fundamental a não privação de bens ou de liberdade sem que se o opere o devido processo legal, assegurando-se o contraditório e ampla defesa a todo e qualquer litigante.
Ecoa, portanto, como uma inconstitucionalidade do dispositivo o permissivo de se executar – leia-se: possibilidade de se atingir o patrimônio e bens de determinada pessoa – mesmo sem que tenha participado do processo, ou em outras palavras, sem que se opere o devido processo legal.
Com efeito, as eventuais incompatibilidades de qualquer lei recém aprovada com o texto constitucional ou de outras leis pátrias representam enorme instabilidade e insegurança jurídica. Sem contar que poderão resultar em um efeito nefasto no mercado de seguros e nos valores envolvidos nas operações, além de uma provável uma enxurrada de embates e ações judiciais, para sanar as inconsistências textuais existentes.
Por esta e por outras razões, se espera que as incongruências e fragilidades do PLC nº 29/2017 possam ser melhor debatidas, lapidadas e devidamente elucidadas antes de sua aprovação e promulgação definitiva, para não vir na contramão ao que se espera de uma lei específica que possa contribuir no fortalecimento e progresso do contrato de seguro e relações conexas, tão essencial ao próprio crescimento e desenvolvimento socioeconômico do país.
[1] Advogada integrante da Poletto & Possamai Sociedade de Advogados. Inscrição na OAB/PR nº 54.862.
[2] Originalmente, o texto foi apresentado pelo Deputado Federal José Eduardo Cardozo em 13/05/2004, PL nº 3555/2004.
[3] De relatoria atual do Senador Armando Monteiro, no Senado Federal recebeu o nº 29/2017.
[4] A título exemplificativo, segundo dados divulgados pela Escola Nacional de Seguros, a arrecadação com prêmios diretos de seguros, saúde suplementar, contribuições previdenciárias e em títulos de capitalização, foi superior a quantia de R$ 360 bilhões de reais em 2015, correspondendo a 6,1% do PIB. Já os pagamentos realizados pelo mercado, correspondem a mais de R$ 245 bilhões de reais (4,2% do PIB). Informações divulgadas em: www.tudosobreseguros.org.br/portal/pagina.php?l=267.
Há, inclusive, uma estimativa de que em 2025 a arrecadação de prêmios e contribuições de seguros represente 7,4% do PIB. Conclusão do economista Lauro Faria do Centro de Pesquisa e Economia do Seguro (CPES), da Escola Nacional de Seguros. Acesso em: www.funenseg.org.br/noticia-etalhes/arrecadacao -de-seguros-pode-chegar-a-74-do-pi.
[5] Art. 9º. O contrato de seguro, em suas distintas modalidades, será regido por esta Lei.
§ 1º Aplica-se exclusivamente a lei brasileira:
I – aos contratos de seguro celebrados por seguradora autorizada a operar no Brasil;
II – quando o segurado ou o proponente tiver residência ou domicílio no País;
III – quando no Brasil situarem – se os bens sobre os quais recaírem os interesses garantidos; ou
IV – sempre que os interesses garantidos recaírem sobre bens considerados relevantes para o desenvolvimento da infraestrutura brasileira.
§ 2º Os seguros e planos de saúde regem-se por lei própria, aplicando-se-lhes esta Lei em caráter subsidiário.
[6] Pode-se considerar que os mais comuns seriam a mediação e a arbitragem.
[7] Art. 63. A resolução de litígios por meios alternativos não será pactuada por adesão a cláusulas e condições predispostas, exigindo instrumento assinado pelas partes, e será feita no Brasil, submetida ao procedimento e às regras do direito brasileiro.
Parágrafo único. O responsável pela resolução de litígios é obrigado a divulgar, em repositório de fácil acesso a qualquer interessado, os resumos do conflito e das decisões respectivas, sem identificações particulares.
[8]Art. 2º A arbitragem poderá ser de direito ou de equidade, a critério das partes.
§ 1º Poderão as partes escolher, livremente, as regras de direito que serão aplicadas na arbitragem, desde que não haja violação aos bons costumes e à ordem pública.
§ 2º Poderão, também, as partes convencionar que a arbitragem se realize com base nos princípios gerais de direito, nos usos e costumes e nas regras internacionais de comércio.
§ 3o A arbitragem que envolva a administração pública será sempre de direito e respeitará o princípio da publicidade.
[9] Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
I – soberania nacional;
II – propriedade privada;
III – função social da propriedade;
IV – livre concorrência;
V – defesa do consumidor;
VI – defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003)
VII – redução das desigualdades regionais e sociais;
VIII – busca do pleno emprego;
IX – tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 6, de 1995)
Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.
[10]Mecanismo pelo qual há uma divisão do risco segurado entre duas ou mais seguradoras, em que cada uma responde apenas por sua cota-parte, de acordo com aquilo que pactuarem. Uma delas, será a seguradora líder, que além de administrar o contrato, representará todas as demais no relacionamento com o segurado. Fonte: https://www.susep.gov.br/setores-susep/seger/codoc/glossario/co-seguro.
[11] Art. 37. O cosseguro poderá ser documentado em uma ou em várias apólices com o mesmo conteúdo.
§ 1º Se o contrato não identificar a cosseguradora líder, os interessados podem considerar líder qualquer delas, devendo dirigir – se sempre à escolhida.
§ 2º A cosseguradora líder substitui as demais na regulação do sinistro e, de forma ativa e passiva, nas arbitragens e processos judiciais.
§ 3º Quando a ação for proposta apenas contra a líder, essa deverá, no prazo da resposta, comunicar a existência do cosseguro e promover a notificação judicial ou extrajudicial das cosseguradoras.
§ 4º A sentença proferida contra a líder fará coisa julgada em relação às demais, que serão executadas nos mesmos autos.
§ 5º Não há solidariedade entre as cosseguradoras, arcando cada uma exclusivamente com a sua cota de garantia, salvo previsão contratual diversa.
§ 6º O descumprimento de obrigações entre as cosseguradoras não prejudicará o segurado, beneficiário ou terceiro, resolvendo-se em perdas e danos entre elas.
[12] Art. 506. A sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não prejudicando terceiros.
[13] Art. 31. A sentença arbitral produz, entre as partes e seus sucessores, os mesmos efeitos da sentença proferida pelos órgãos do Poder Judiciário e, sendo condenatória, constitui título executivo.
[14] Sem contar que o art, 513, § 5º da lei processual veda o cumprimento da sentença “em face do fiador, do coobrigado ou do corresponsável que não tiver participado da fase de conhecimento”.