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Cláusulas de renegociação, vagueza estratégica e riscos desconhecidos¹

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Cláusulas de renegociação, também conhecidas como cláusulas de hardship no comércio internacional ou cláusulas de ajuste de boa-fé no common law, são um dos mecanismos para conciliar os objetivos de estabilidade e flexibilidade nos contratos empresariais de longa duração. Por meio dessas cláusulas, as partes assumem o compromisso de revisar consensualmente o contrato quando alterações significativas comprometerem seu equilíbrio original.² A doutrina brasileira as reconhece como instrumentos relevantes na governança de contratos duradouros.³ Ainda assim, um desafio persiste: como redigi-las para que alcancem bons resultados.

 

Ao sugerir como estruturar cláusulas de hardship, parcela dos autores desencoraja os contratantes de usar termos vagos ao definir os riscos de sua hipótese de incidência. Cláusulas bem definidas e específicas seriam mais seguras por serem claras, evitando dúvidas interpretativas às partes ou ao julgador. No entanto, pesquisas empíricas em contratos internacionais mostram que expressões vagas são frequentes nessas cláusulas. ⁴

 

De fato, diversos contratos abordam os fundamentos da revisão de maneira ampla, sem entrar em detalhes. Mencionam, em linhas gerais, situações que poderiam afetar qualquer relação contratual continuada: alterações econômicas, monetárias, comerciais, políticas ou jurídicas (incluindo modificações legais e regulatórias). Outros são mais abertos ainda: remetem a “eventos imprevisíveis”, “fatos imprevistos” ou “causas fora do controle das partes”. 

 

Se são tão comuns, é porque cláusulas com linguagem semanticamente aberta são úteis aos olhos dos redatores de negócios interempresariais. A pergunta ao jurista passa a ser: como?

 

Uma hipótese é esta: a vagueza aí é estratégica, proposital e interna à lógica do contrato. Cláusulas com termos abertos facilitam que os contratantes aloquem riscos desconhecidos de maneira implícita. Essa ideia põe em xeque o argumento doutrinário de que as parte só alocam contingências previsíveis e de que fatos imprevisíveis escapam da distribuição convencional de riscos (devendo quando muito serem tratados por institutos legais como, se o contrato é regido pelo Direito material brasileiro, a onerosidade excessiva superveniente – art. 478, Código Civil). Essa visão se inspira, explicita ou implicitamente, na diferença entre “risco” e “incerteza” que o economista Frank Knight cunhou no início do século XX.⁵ Riscos seriam traduzíveis em probabilidades e, assim, calculáveis em termos de impacto; incertezas, não. Dessa premissa se deriva a seguinte inferência: só o que é calculável poderia racionalmente estar alocado num contrato; outros eventos escapariam da tentativa de distribuir riscos. Nessa linha, ou o risco está explícito no instrumento, ou as partes deixaram de distribuí-lo de modo consciente. 

 

Essa visão dicotômica – que economistas contemporâneos vêm reformulando⁶ – encobre várias realidades intermediárias. Entre o risco puro e a incerteza completa, as pessoas agem com graus matizados de conhecimento sobre o futuro. É por isso que os agentes econômicos, ao menos em contratos paritários e mais sofisticados, conseguem alocar inclusive riscos de eventos imprevisíveis – e o fazem com alguma frequência. Nem todo evento precisa ser antecipado de modo explícito para que o contrato regule seus impactos (ou, ao menos, alguns de seus impactos). O problema não está num cálculo probabilístico, necessariamente. A questão-chave é entender o texto que instrumentaliza a cláusula de renegociação: tudo depende da técnica redacional para descrever certo risco por meio da linguagem.

 

Quanto mais vaga ou aberta a cláusula, maior é seu alcance: mais eventos ela potencialmente abarca em seu antecessor fático. E quanto mais eventos abrangidos, maior a chance de que um deles seja imprevisível quando tomado sozinho, algo que só se descobrirá depois de o evento acontecer (isto é, quando a incerteza sobre ele se desfizer). É como se as partes agrupassem vários estados de mundo futuros – alguns previstos, outros não – sob um mesmo guarda-chuva amplo sem ter que descrevê-los um a um. A alternativa seria fragmentar esses cenários por meio de uma linguagem cada vez mais precisa, formando categorias de eventos progressivamente mais específicas, até se aproximar do ideal teórico dos economistas: o contrato “completo e contingente”.⁸

 

Por exemplo, um contrato de fornecimento de longo prazo prevê em sua cláusula de hardship a seguinte exceção: a falta de insumos “por qualquer causa” não será motivo para revisá-lo. A função habitual de uma ressalva como essa é alocar o risco ao fornecedor, que está em posição melhor para geri-lo. Esse instrumento não distingue entre a causa da escassez, embora seja razoável supor que as partes conseguissem separá-la em causas distintas se investissem num contrato mais completo – imaginando e redigindo contingências mais precisas e as respectivas soluções de reequilíbrio. A escassez por fatores de política interna do país do fornecedor poderia ser tratada diferente da escassez originada de choques na economia global, por exemplo.

 

Agora imagine-se que o mercado interno experimenta a falta de certo insumo importado, aumentando os custos do fornecedor, por conta de novas tarifas alfandegárias impostas por governo recém-eleito. É pouco crível que as empresas antevissem a tarifa nova enquanto uma probabilidade, um risco puro – inexistem séries históricas de um governo recém-empossado que viabilize esse cálculo. A cláusula não prevê esse risco explicitamente. Significa que ela deixa de incidir se o fato se materializa? Não: o risco está alocado de modo implícito dentro do “pacote” mais amplo, o do risco da escassez “por qualquer causa”. As partes distribuíram o impacto de uma contingência que, em si, lhes era imprevisível quando assinaram o contrato. Outras locuções abertas – e comuns – em contratos entre empresários cumpririam função parecida: retome-se as cláusulas de renegociação que distribuem riscos de “eventos adversos” ou “fora do controle das partes”. 

 

Claro, alguém sempre poderá questionar se uma alocação de risco via termos vagos é mais justa ou mais eficiente num caso concreto, ou se não era melhor que as partes tivessem individualizado o risco (isto é, o estado de coisas futuro) explicitamente no contrato.  É o problema interpretativo clássico de saber se o contrato tem – ou não – uma lacuna involuntária, acidental, que o julgador deva preencher com as normas supletivas do sistema. Mas essa questão é independente e distinta de afirmar do ponto de vista empírico que as partes de fato conseguem alocar esses riscos em certas situações.

 

Essa abordagem se harmoniza com a lógica típica que redatores veem nas cláusulas de renegociação: lidar com a volatilidade econômica e política. Uma cláusula muito específica requer das partes que invistam tempo, dinheiro e energia em conceber, negociar e redigir um pressuposto fático exato para ela. Nem sempre isso é factível se, por exemplo, o setor do contrato está exposto a muitos riscos distintos. Ou então, nem sequer desejável: as empresas podem concordar sobre resultados ainda que discordem – ou que ignorem – os meios para alcançá-los. Na falta de consenso sobre uma métrica segura para o desequilíbrio, é mais fácil convencionar que ele deve ser “comercialmente injusto” – e lidar com o problema só quando for necessário.  

 

Enfim, alguns riscos são em si tão variáveis, tão fluídos, que a única maneira de os capturar no presente é mesmo com palavras vagas. Ninguém consegue prever se um embargo no Oriente Médio dentro de cinco anos fará saltar o preço do petróleo no mercado internacional; resta se acautelar contra “aumentos imprevisíveis do preço do petróleo” ou simplesmente contra “choques na economia internacional”. 

 

Cláusulas de renegociação com suporte fático vago, seja para definir riscos, seja para estabelecer as consequências sobre o equilíbrio negocial, trazem uma racionalidade que seria perdida se as empresas optassem por cláusulas detalhadas. Com essa constatação clara, uma das frentes de trabalho doutrinário a respeito delas é entender sua lógica mais a fundo, o que ajuda o jurista a oferecer subsídios novos a redatores e a intérpretes de contratos interempresariais.

https://www.conjur.com.br/2025-jun-23/clausulas-de-renegociacao-vagueza-estrategica-e-riscos-desconhecidos/


 

Referências:

¹ Este texto retoma de maneira suscinta algumas reflexões do seguinte artigo escrito em coautoria: SILVA, Luiz Augusto da; FRAZÃO, Ana de Oliveira. Cláusulas de renegociação em contratos empresariais: a estrutura do seu suporte fático. Revista de Direito Civil Contemporâneo, no prelo.

² Conceitualmente, há diferença entre a obrigação de renegociar ex contractu – ou seja, cuja fonte imediata é a cláusula do contrato – de um eventual dever ex lege de renegociação, com fonte imediata na lei. Este artigo trata somente da primeira.

³ Dentre todos: BANDEIRA, Paula Greco. As cláusulas de hardship e o dever da boa-fé objetiva na renegociação dos contratos. Pensar – Revista de Ciências Jurídicas, Fortaleza, v. 21, n. 3, p. 1031-1054, set./dez. 2016. p. 1035-1036; COSTA, José Augusto Fontoura; NUSDEO, Ana Maria de O. As cláusulas de força maior e de hardship nos contratos internacionais. Doutrinas Essenciais: Obrigações e Contratos, São Paulo, v. 4, p. 633-672, jun. 2011, seção 3; GLITZ, Frederico Eduardo Zenedin. Uma leitura da contemporaneidade contratual: lesão, cláusula de hardship e a conservação do contrato. 2005. 218 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2005. p. 122-166; MARTINS-COSTA, Judith. A cláusula de hardship e a obrigação de renegociar nos contratos de longa duração. Revista de Arbitragem e Mediação, São Paulo, a. 7, n. 25, p. 11-39, abr./jun., 2010, seção 2; NERY JUNIOR, Nelson; SANTOS, Thiago Rodovalho dos. Renegociação contratual. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 906, p. 113-156, abr. 2011, seção 2.1.1; PEREIRA, Fábio Queiroz; ANDRADE, Daniel de Pádua. A obrigação de renegociar e as consequências de seu inadimplemento. Revista de Direito Civil Contemporâneo, São Paulo, v. 15, p. 209-237, abr./jun. 2018, seção 2.

Exemplos (tradução livre): “[…] em caso de colapso do sistema monetário internacional atual […]”; “[…] em consequência de circunstâncias de ordem econômica ou comercial […]”; “No caso da ocorrência de eventos políticos externos ou internos […]”; “No caso de um evento grave econômico ou financeiro […]”; “[…] “Todos os fatos que poderiam colocar em risco a boa conclusão do contrato […]”; “[…] No caso de ocorrerem variações muito importantes na conjuntura ou modificações muito notáveis nas condições econômicas […]”; “[…] circunstâncias fora das previsões normais das partes […]”; “[…] mudança de circunstâncias além do controle da referida parte ao atuar como um operador razoável e prudente […]”  (FONTAINE, Marcel; DE LY, Filip. Drafting International Contracts: An Analysis of Contract Clauses. Nova Iorque: Transnational Publishers, 2006. p. 463).

KNIGHT, Frank. Risk, Uncertainty and Profit. Boston: Houghton Mifflin Company, 1921. pp. 231-232.

KAY, John; KING, Mervyn. Radical Uncertainty: Decision-making Beyond the Numbers. W. W. Norton & Company: Nova Iorque, 2020. p. 20-24.

TRIANTIS, George. Contractual Allocations of Unknown Risks: A Critique of the Doctrine of Commercial Impracticability. The University of Toronto Law Journal, v. 42, n. 4, p. 450-483, 1992. p. 464-468.

O “contrato complete e contingente”, enquanto referencial teórico, é aquele que prevê ex ante a obrigação mais eficiente das partes em cada possível contingência futura (estado de mundo). Ampliar em: TIROLE, Jean. Incomplete Contracts: Where do We Stand? Econometrica, v. 67, n. 4, p. 741–781, 1999, p. 743-744.

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