
O avanço exponencial das tecnologias digitais e o crescente uso das criptomoedas como forma de investimento e reserva de valor têm desafiado os paradigmas tradicionais do Direito Sucessório.
A transmissão de ativos digitais, notadamente criptoativos como Bitcoin, Ethereum e outros tokens virtuais, impõe uma reconfiguração conceitual e normativa no âmbito do Direito Civil, uma vez que tais bens, embora de valor econômico inquestionável, não encontram respaldo expresso na legislação sucessória brasileira. Para além da ausência de respaldo, há uma evidente dificuldade na real transmissão dos bens, uma vez que quase que na totalidade das vezes são inacessíveis pelos herdeiros.
Nesse contexto, destaca-se a distinção entre os dois principais modos de armazenamento desses ativos: as hot wallets, que permanecem conectadas à internet e são, por isso, mais acessíveis porém mais vulneráveis a ataques cibernéticos; e as cold wallets, que operam desconectadas da rede, oferecendo maior segurança contra invasões, mas exigindo cuidados específicos quanto à sua conservação e ao acesso por terceiros autorizados.
As criptomoedas se caracterizam por sua natureza descentralizada, pela inexistência de intermediário central e por serem armazenadas por meio de chaves criptográficas privadas, o que as torna inacessíveis na hipótese de falecimento do titular, caso não haja planejamento adequado.
Diante da ineficácia do Direito vigente para lidar com tais situações, ainda muito recentes e inovadores na sociedade, surgem desafios de ordem prática e jurídica, como a impossibilidade de identificar ou acessar as carteiras digitais e a inexistência de previsão normativa clara quanto à sua transmissibilidade.
Segundo Santos e Disconzi (2024), a ausência de uma legislação específica permite concluir que os criptoativos podem ser considerados bens passíveis de herança, nos termos gerais do art. 1.784 do Código Civil. Todavia, a transmissão efetiva destes bens depende da existência de mecanismos que permitam o acesso aos dados criptografados, como a chave privada da carteira digital.
Essa problemática tem gerado o fenômeno que alguns doutrinadores denominam “limbo cibernético”, em que patrimônio digital é perdido pela simples falta de previsão ou documentação em vida do seu titular (PELLENZ et al., 2024).
Em que pese a existência de projetos de lei que buscam disciplinar a matéria (a exemplo do PL 4/2025), é imprescindível que o titular desses bens realize planejamento sucessório específico, visando não apenas a transmissibilidade, mas também a preservação da segurança e da confidencialidade das informações.
Para além, pela própria natureza do bem, a sua ideia é de ser anônimo, descentralizado, e com regulação mais difícil de atingir, de modo que o projeto de lei até o momento não parece resolver a problemática
Diante do impasse, a maneira mais segura para mitigar os riscos da perda patrimonial é a de aderir a testamentos com cláusulas sobre ativos digitais. Autores como o Juiz Walter Godoy dos Santos Junior (2025) defendem a inserção de disposições testamentárias claras sobre a existência de ativos digitais, bem como a localização das chaves privadas ou instruções seguras para seu acesso.
Complementarmente, é recomendável considerar a utilização de cold wallets e serviços de custódia regulados, que possam oferecer alternativas técnicas seguras para a transmissão.
Outro aspecto relevante reside na necessidade de organização documental detalhada. Além do testamento, recomenda-se a criação de inventários digitais, contendo a relação de ativos, plataformas utilizadas, senhas, chaves de autenticação e demais informações relevantes, sempre observando protocolos de segurança da informação. Tal recomendação vai além da preservação de criptoativos, sendo igualmente válida para todo o legado virtual e digital deixado pelo falecido, que compreende não apenas bens patrimoniais, mas também registros pessoais e informações sensíveis armazenadas em meio digital.
A ausência desses cuidados pode tornar impossível o acesso aos ativos, comprometendo o cumprimento da vontade do de cujus e prejudicando os direitos patrimoniais dos herdeiros, com a impossibilidade de acesso aos criptoativos.
Tomando-se como base as experiências internacionais, destaca-se a experiência dos Estados Unidos, a aplicação do Revised Uniform Fiduciary Access to Digital Assets Act (RUFADAA) tem possibilitado a transmissão de ativos digitais mediante autorização testamentária prévia, harmonizando o direito à sucessão com a proteção de dados e a privacidade. Tal legislação prevê que o titular possa determinar quem terá acesso a seus ativos digitais após sua morte, estabelecendo um modelo de compatibilização entre vontade privada, proteção de dados e transmissão hereditária.
Conforme demonstrado, a ausência de disposição legal específica sobre a sucessão de criptoativos impõe, por ora, a aplicação das regras gerais do Código Civil, notadamente o disposto no art. 1.784. Entretanto, a maior problemática reside não na transmissibilidade em si, mas no acesso aos ativos digitais, dada sua natureza criptografada e dependente de informações que, se não forem organizadas e transmitidas adequadamente, tornam os bens inatingíveis.
Nesse cenário, reforça-se a necessidade de um planejamento sucessório voltado especificamente às criptomoedas, que contemple instrumentos como testamentos, inventários digitais e guarda segura das chaves privadas. Trata-se de uma medida essencial para garantir a preservação patrimonial e o respeito à vontade do autor da herança.
Apesar dos avanços doutrinários e legislativos em curso, ainda existem lacunas relevantes no cenário brasileiro, sobretudo no tocante à regulamentação específica dos ativos digitais e na definição de suas consequências fiscais no contexto sucessório. A tributação de criptomoedas herdadas, por exemplo, carece de normatização clara, o que gera insegurança quanto à incidência de ITCMD, à valoração dos ativos e à obrigação de declaração.
Diante de todo o exposto, enquanto não se concretiza a necessária regulamentação específica, o planejamento sucessório detalhado realizado pelo advogado permanece como instrumento fundamental para assegurar a segurança patrimonial na transmissão desses ativos.
Referências
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Direito das Sucessões. 37. ed. São Paulo: Saraiva, 2023.
GODOY DOS SANTOS JUNIOR, Walter; SALZEDAS, Iriana Maira Munhoz. O direito sucessório em tempos digitais. Revista do IBDFAM: Famílias e Sucessões, n. 66, 2025.
KLEIN, Júlia Schroeder B.; ADOLFO, Luiz Gonzaga S. Herança digital: diretrizes a partir do leading case do Der Bundesgerichtshof. Revista Brasileira de Direito Civil, 2022.
PELLENZ, Mayara et al. Herança virtual no Brasil: desafios legais e práticos na gestão do patrimônio digital pós-morte. Revista da ESA/OAB-RS, 2024.
SANTOS, Nathan Lopes; DISCONZI, Verônica S. P. Herança digital: sucessão de criptomoedas e NFTs. Revista REASE, v. 10, n. 10, 2024.
TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Direito das Sucessões. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021.