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Pais de pet: afeto, mercado bilionário e os novos rumos do Direito

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Uma série de mudanças estruturais tem levado muitas famílias a postergar a decisão de ter filhos, ao mesmo tempo em que estimula o aumento do número de animais de estimação e traz ao centro o papel dos bichanos na manifestação de afetividade humana. Sem crianças e maior disponibilidade de renda nos lares jovens, os pets ganham renovado espaço nas relações socioafetivas e muitos consideram os animais como seus filhos peludos, autonomeando-se orgulhosamente “pais de pet”.

Esse fenômeno não se restringe ao território nacional; pelo contrário: quedas nas taxas de natalidade e a priorização dos cuidados com pets preocupam também autoridades do outro lado do mundo, como a China[1] e o Japão[2]. Enquanto os governos buscam combater o rápido envelhecimento da população e o declínio da mão de obra produtiva, é o mercado pet que vem crescendo aceleradamente.

O novo status dos animais de estimação como membros da família abre espaço para alimentação gourmet, roupas grifadas, funerais elaborados e uma ampla gama de serviços que vai desde creches a hotéis e spas especializados. No Brasil, estima-se que os “pais de pet” gastem mais de R$ 200,00 (duzentos reais) mensais com os animais[3],  sendo que a Associação Brasileira da Indústria de Produtos para Animais de Estimação (ABINPET) informa que o mercado pet brasileiro faturou R$ 75,4 bilhões em 2024, o que representa aumento de 9,6% em relação a 2023.

Não obstante, esse volume de gastos tem uma explicação racional: os benefícios trazidos pelos pets são extremamente valiosos em meio aos desafios da sociedade contemporânea. De acordo com relatório da associação Health for Animals[4], ter um pet traz uma série de benefícios terapêuticos, fisiológicos, psicológicos e psicossociais aos seus tutores, dentre os quais a redução da pressão arterial com a consequente diminuição de riscos cardiovasculares, o aumento de atividades físicas, suporte emocional e um senso de melhoramento geral do bem-estar físico e mental.

A expressividade e relevância do fenômeno, como não poderia deixar de ser, tem demandado um novo olhar do direito brasileiro. A Constituição Federal, em seu art. 225, já assegurava a todos o direito ao ambiente ecologicamente equilibrado, impondo à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. Em seu inciso VII, reforça o dever do Poder Público de proteger a fauna e a flora, bem como a vedação à crueldade animal.

Essa proteção, contudo, é genérica e não reconhece o status diferenciado dos animais de estimação, tampouco o papel de seu vínculo socioafetivo nas novas configurações familiares. O direito brasileiro, em verdade, sempre tratou os animais como bens móveis, em linha com a classificação prevista no art. 82 do Código Civil. Esse cenário, entretanto, tende a ganhar novos contornos.

Discute-se hoje a reforma do Código Civil por meio do Projeto de Lei n.º 4/2025, de autoria do senador Rodrigo Pacheco (PSD/MG). A proposta é de uma renovação legislativa abrangente para adaptar a legislação cível à evolução dos valores da sociedade e às novas tecnologias, de modo que o projeto confere especial atenção aos direitos da personalidade e ao direito digital.

Dentre as alterações propostas está o reconhecimento jurídico dos pets como parte integrante do núcleo sociofamiliar, alçando esta forma de manifestação da afetividade humana como fator relevante a ser ponderado pelo direito. É o que se extrai da redação proposta para o art. 19 do Código Civil que passa a definir que “a afetividade humana também se manifesta por expressões de cuidado e de proteção aos animais que compõem o entorno sociofamiliar da pessoa”.

Para além, a proposta legislativa sugere a incorporação do novel art. 91-A ao Código de modo a reconhecer que “os animais são seres vivos sencientes e passíveis de proteção jurídica própria, em virtude de sua natureza especial”, abandonando, desse modo, a classificação anterior que os tratava como simples bens móveis. A redação sugerida para o §2º deixa claro que as disposições relativas aos bens somente serão aplicáveis aos animais subsidiariamente e na medida em que não sejam incompatíveis com sua natureza até o advento da citada lei especial.

A mudança almejada pelo legislador busca conferir respaldo jurídico para um tratamento mais adequado aos animais – em especial àqueles de estimação – trazendo maior harmonia às relações afetivas hoje já vivenciadas por muitos. Tanto é assim que o judiciário já tem sido chamado a responder reiteradamente a casos em que se discute o direito de visitação a animais de estimação e a repartição das despesas com a sua manutenção quando da dissolução do vínculo conjugal.

Decisão da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça[5] bem ilustra esse contexto. Na ocasião, a Corte reconheceu a relevância da relação afetiva do casal para com o animal adquirido durante a união estável e a proteção constitucional a tal vínculo. Sem desconsiderar a natureza atribuída aos animais pela lei civil, ponderou a insuficiência do ordenamento jurídico sob este viés, reconhecendo que “os animais de companhia possuem valor subjetivo único e peculiar, aflorando sentimentos bastante íntimos em seus donos, totalmente diversos de qualquer outro tipo de propriedade privada”. Para o deslinde do caso, a Corte declarou a necessidade de considerar para além do vínculo afetivo entre tutores e pet, o bem-estar e o melhor interesse do animal enquanto ser senciente, decidindo, assim, pela manutenção do direito de visitas ao animal.

Nessa linha, o legislador propõe que o parágrafo terceiro do art. 1.566 do Código Civil passe a positivar que “os ex-cônjuges e ex-conviventes têm o direito de compartilhar a companhia e arcar com as despesas destinadas à manutenção dos animais de estimação, enquanto a eles pertencentes”.

Como se vê, a proposta de reforma legislativa positiva o entendimento jurisprudencial corrente que já estabelece critérios que levam em consideração o vínculo afetivo, a responsabilidade pelo cuidado e o bem-estar animal. Ótima notícia para os “pais de pet”: os novos rumos do Direito tendem a legitimar a família multiespécie, conferindo novos contornos à ideia de dignidade humana.


Notas de Rodapé

[1] https://www.cnnbrasil.com.br/economia/macroeconomia/china-tera-e-breve-mais-pets-do-que-criancas-pequenas-entenda-por-que-equacao-ameaca-economia/

[2] https://exame.com/mundo/no-japao-os-pets-superam-as-criancas-e-viram-prioridade-nas-familias/

[3]https://www.cnnbrasil.com.br/lifestyle/pais-de-pet-tendem-a-gastar-mais-de-r-200-por-mes-com-bichos-diz-levantamento/

[4] https://healthforanimals.org/reports/pet-care-report/global-trends-in-the-pet-population/

[5] REsp n.º 1.713.167/SP, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 19/6/2018, DJe de 9/10/2018.

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