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Desafios na interpretação dos contratos de seguro de grandes riscos sob a Lei 15.040/2024

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Uma das principais críticas à nova Lei de Contratos de Seguro (“LCS”) é o fato dela não distinguir entre os seguros “massificados” e os de “grandes riscos” – indo na contramão de outros países cuja legislação securitária prevê essa diferença de tratamento (ex. Espanha, Portugal, França, Alemanha, Argentina, Chile, Peru, Colômbia etc.).[1]

Ao longo dos 134 artigos da LCS há apenas uma regra diferenciada para seguros de maior complexidade, que se repete nos parágrafos quintos dos artigos 86 e 87.[2] Trata-se de previsão que autoriza a Susep a fixar prazos maiores do que trinta dias para a regulação / liquidação de certos ramos de seguro, respeitado o prazo máximo de 120 dias.

Os demais dispositivos da LCS, no entanto, aplicam-se indistintamente para todos os ramos de seguro, sejam eles contratados por consumidores hipossuficientes (ex. seguro de automóvel, de vida) ou por empresas sofisticadas (ex. seguro de riscos nomeados e operacionais, de riscos de petróleo, seguro-garantia para contratos de grande monta celebrados entre pessoas jurídicas etc.).

É o que ocorre com as regras da nova lei relacionadas com a interpretação do contrato de seguro. Para fins do presente artigo, destacam-se dois dispositivos da LCS que merecem atenção redobrada:

Art. 9º O contrato cobre os riscos relativos à espécie de seguro contratada. […]

§ 2º Se houver divergência entre a garantia delimitada no contrato e a prevista no modelo de contrato ou nas notas técnicas e atuariais apresentados ao órgão fiscalizador competente, prevalecerá o texto mais favorável ao segurado. […]

Art. 57. Se da interpretação de quaisquer documentos elaborados pela seguradora, tais como peças publicitárias, impressos, instrumentos contratuais ou pré-contratuais, resultarem dúvidas, contradições, obscuridades ou equivocidades, elas serão resolvidas no sentido mais favorável ao segurado, ao beneficiário ou ao terceiro prejudicado.

Não se nega que tais preceitos funcionam bem para os seguros massificados. Um consumidor de um seguro de automóvel, por exemplo, não quer se surpreendido na hora do sinistro e descobrir que sua apólice – de forma peculiar – exclui da cobertura um risco tipicamente coberto naquele ramo de seguro (caput do art. 9º). Tampouco quer se sujeitar a uma cláusula desfavorável que só existe na sua apólice, mas não nas condições contratuais que a seguradora submeteu ao crivo da Susep (parágrafo segundo do art. 9º). Muito menos ver ser aplicada contra si uma previsão da apólice que limita a cobertura securitária a um patamar inferior daquela que foi ofertada em materiais promocionais (art. 57).

Os seguros de grandes riscos, contudo, não são produtos “de prateleira” sujeitos às situações descritas acima. Quando um determinado risco é de difícil colocação no mercado segurador, por conta de sua complexidade e dos altos valores envolvidos, a extensão da cobertura da apólice costuma ser minuciosamente negociada entre o segurado e o segurador. Ambas as partes são assessoradas por profissionais qualificados durante essas tratativas (corretores e escritórios de advocacia especializados).

O resultado é um contrato de seguro personalizado, que reflete de um lado um desenho de coberturas que a seguradora (juntamente com as cosseguradoras e resseguradores) possuem capacidade e apetite para oferecer, e de outro lado uma proteção securitária e valor de prêmio que faça sentido para o segurado. É um equilíbrio fino e delicado, pouco talhado para suportar interferências externas.

Foi com isso em mente que o Conselho Nacional de Seguros Privados havia editado a Resolução CNSP 407/2021. Além do seu conteúdo principiológico (liberdade negocial ampla, tratamento paritário entre os contratantes, intervenção estatal subsidiária e excepcional na formatação dos produtos etc.), a resolução prevê em seu art. 7º que “as condições contratuais e as notas técnicas atuariais relativas aos contratos de seguros de danos para cobertura de grandes riscos não estão sujeitas ao registro eletrônico de produtos junto à Susep previamente a sua comercialização”.

Com a entrada em vigor da LCS, não está claro qual o papel que será desempenhado pela Resolução CNSP 407/2021, ou mesmo se ela será alterada / revogada – isso sem entrar no mérito da discussão ora em curso no STF acerca da constitucionalidade desta norma infralegal.[3] Fato é que a resolução corre sério risco de perder sua efetividade.

O caput do art. 9º da LCS, por exemplo, abre a porta para interpretações extensivas da cobertura da apólice com base no conceito subjetivo de “riscos relativos à espécie de seguro contratada”. Não raro, os seguros de grandes riscos podem excluir da cobertura determinado risco que usualmente é contemplado por aquele ramo securitário, fruto de um acordo entre as partes para viabilizar a emissão da apólice para algum risco de difícil aceitação pelo mercado. Desconsiderar tal exclusão de risco fatalmente desequilibraria o negócio que deu origem à apólice naqueles exatos termos.

Isso também vale para o parágrafo 2º do art. 9º da LCS: não obstante a seguradora possua um clausulado padrão registrado na Susep para determinado ramo (ex. riscos operacionais), a apólice negociada para um grande risco pode divergir de tal modelo, sobretudo em razão da já citada previsão do art. 7º da Resolução CNSP 407/2021 que dispensa a necessidade de registro prévio das condições contratuais. Não seria razoável aplicar o clausulado registrado na Susep em detrimento das regras específicas negociadas pelas partes.

Por fim, o art. 57 da LCS pode ser uma ameaça aos seguros de grandes riscos caso se privilegie o conteúdo de peças publicitárias – ou de algum material enviado durante as tratativas de emissão da apólice – ao invés das cláusulas negociadas entre as partes. Faz-se a ressalva, contudo, de que mesmo em seguros de grandes riscos a maior parte das condições contratuais segue sendo elaborada pela seguradora, de modo que é legítimo que eventuais dúvidas, contradições, obscuridades ou equivocidades oriundas de tais cláusulas sejam resolvidas no sentido mais favorável ao segurado.[4]

Com base nos critérios de resolução de conflitos entre normas – hierárquico, cronológico e de especialidade -, não há dúvidas de que as previsões da LCS prevalecerão sob as regras da Resolução CNSP 407/2021, ou mesmo sobre o Código Civil (em especial os artigos 421 e 421-A, que tratam da interpretação de contratos civis e empresariais) e da Lei 13.874/19 (“Lei de Liberdade Econômica”).

O desafio, portanto, é como aplicar as regras de interpretação da LCS aos contratos de seguro de grandes riscos. O ideal é que tais regras, em especial as apontadas nesse artigo, sejam aplicadas com moderação, reconhecendo-se que as apólices de grandes riscos constituem negócios jurídicos únicos, fora do ecossistema padronizado, regulamentado e protetivo que caracteriza os seguros massificados.

 


Notas de Rodapé

[1] Vide artigo de autoria de Ilan Goldberg e Guilherme Bernardes publicado em 29 de agosto de 2023, antes mesmo da publicação da LCS: “Os seguros para grandes riscos, os seguros massificados e o princípio da isonomia”. Disponível no link: >https://www.migalhas.com.br/depeso/392675/os-seguros-para-grandes-riscos-e-os-seguros-massificados<. Acesso em 13 de outubro de 2025.

[2] “A autoridade fiscalizadora poderá fixar prazo superior ao disposto no caput deste artigo para tipos de seguro em que a verificação da existência de cobertura / liquidação dos valores devidos implique maior complexidade na apuração, respeitado o limite máximo de 120 (cento e vinte) dias”.

[3] Vide ADI 7074 proposta em fevereiro de 2022 pelo Partido dos Trabalhadores, conclusa desde março de 2023 ao relator Min. Gilmar Mendes.

[4] Trata-se da regra de interpretação conhecida como “contra proferentem”, a qual seria aplicável aos contratos de seguro mesmo na ausência do art. 57 da LCS, tendo em vista a previsão do art. 423 do Código Civil.

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