
Sempre que uma lei nova surge para tratar de contratos, resta saber: a quais negócios ela se aplica? A lei vale para contratos celebrados a partir de sua vigência, ou ela se aplica imediatamente para os efeitos pendentes de contratos em curso? A Nova Lei do Contrato de Seguro (Lei 15.040/2024) – que passa a vigorar em dezembro deste ano – já levanta essas questões. Por exemplo: a Nova Lei altera a disciplina jurídica da regulação dos sinistros ao criar prazo decadencial de trinta dias para a seguradora negar a cobertura (art. 86) e vedar que ela mude as razões da negativa (art. 87, § 6º). Imagine-se um seguro contratado em julho de 2025, mas cujo sinistro só ocorra em 2026. Se o segurado avisá-lo à seguradora, as regras da Nova Lei incidem? Ou o contrato é regido na íntegra pelo Código Civil?
Este texto defende a seguinte tese: a resposta constitucionalmente legítima é que a Nova Lei do Contrato de Seguro só se aplica a contratos celebrados a partir de sua entrada em vigor, ou seja, a partir de dezembro de 2025. Admitir o contrário – que a lei interfere nos seguros firmados antes dela – seria fazê-la retroagir. Propostas nessa linha são incompatíveis com o sistema constitucional brasileiro e com a jurisprudência histórica dos Tribunais Superiores.
No Brasil, a irretroatividade das leis é regra de estatura constitucional
A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada – é o que preconiza o art. 5°, inciso XXXVI, da Constituição. No mesmo sentido, e densificando a garantia no plano infraconstitucional, dispõe o art. 6° da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei 4.657/42): “a lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada”. Atribuir à lei efeito imediato significa que ela se aplica a partir do momento em que entra em vigor, regulando situações jurídicas futuras. Por outro lado, há efeito retroativo – inconstitucional – quando a lei nova é aplicada a situações jurídicas pretéritas e já consolidadas.
As pessoas são titulares do direito-garantia fundamental à observância do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada – inclusive pelo Estado-legislador. Afinal, “para que o indivíduo possa autonomamente desenhar sua própria vida e livremente determinar seu curso,” – escreve Humberto Ávila – “ele precisa agir com base no Direito no presente e não ser surpreendido pelo próprio Direito no futuro”[1]. Nas democracias, o Direito é prospectivo: as leis incidem sobre fatos a acontecer dali para frente.
Essa ordem de ideias assume relevância especial para os contratos e demais atos da vida privada. Leis novas não podem modificar os requisitos de validade nem afetar os efeitos de contratos celebrados no passado. Negócios jurídicos são regidos pela lei vigente ao tempo em que foram efetivados. O contrato – feito de acordo com os critérios de validade das leis positivadas quando da sua celebração – é um ato jurídico perfeito. No conceito da Lei de Introdução, “reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou” (art. 6°, § 1°). Enfim, a cláusula constitucional que protege o ato jurídico perfeito e aos direitos adquiridos confere a segurança indispensável ao bom fluxo das relações jurídicas.
O STF e o STJ reiteradamente afastam a incidência retroativa de leis sobre atos privados
Essa é a jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a eficácia da lei no tempo e o estatuto dos contratos. Historicamente, o STF diferencia três graus possíveis de retroatividade das normas. Primeiro, a retroatividade máxima: lei nova desconstitui ou altera situações jurídicas consolidadas no passado, p. ex., desfaz a coisa julgada ou invalida um contrato. Segundo, a média: lei atinge os efeitos pendentes de situações jurídicas anteriores, p. ex., lei nova limita a taxa de juros e se aplica aos juros vencidos, mas não pagos, quando da sua entrada em vigor. Terceiro e enfim: a chamada retroatividade mínima: lei nova altera os efeitos futuros de situações consolidadas no passado, p. ex., lei nova com limite à taxa de juros que se aplica só aos juros vencidos depois de sua vigência.
Segundo o STF, a garantia constitucional do ato jurídico perfeito e do direito adquirido veda a retroatividade de leis em qualquer grau. No julgado clássico sobre o tema, o STF afirmou: “se a lei alcançar os efeitos futuros de contratos celebrados anteriormente a ela, será essa lei retroativa (retroatividade mínima) porque vai interferir na causa, que é um ato ou fato ocorrido no passado”[2]. Exceções pontuais à regra da irretroatividade constam na própria Constituição, como é o caso da lei penal mais benéfica, que retroage para beneficiar o réu (art. 5º, XL). De resto, o legislador está vinculado a essas garantias.
Desde então, o STF invalida ou confere interpretação conforme à Constituição a artigos de lei com pretensa eficácia retroativa sobre atos jurídicos privados. Dois exemplos recentes e de grande impacto econômico são os julgados sobre a Lei dos Planos de Saúde[3] (Lei 9.656/1998) e sobre a mudança de índice de correção monetária em operações de crédito rural[4] (Lei 8.177/1991). Mas esses casos fazem parte de uma cadeia de precedentes que remonta ao fim dos anos 1990[5].
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) segue a mesma linha. Em julgado de 2024, a Terceira Turma concluiu que regras novas sobre a exoneração do fiador na Lei de Locações (Lei 8.245/91), criadas por lei de 2009 (Lei 12.112/09), incidem apenas aos “contratos celebrados a partir de sua vigência”. O Tribunal já entendia dessa forma, a exemplo do julgamento de 2019 sobre a irretroatividade da Lei do Distrato (Lei 13.786/2018) a negócios imobiliários[6] e, no que é um dos leading cases do assunto no STJ, sobre a eficácia prospectiva do Código de Defesa do Consumidor[7].
Razões de política legislativa são indiferentes aqui: a garantia se aplica “a toda e qualquer lei infraconstitucional, sem qualquer distinção entre lei de direito público e lei de direito privado, ou entre lei de ordem pública e lei dispositiva”[8]. A jurisprudência a esse respeito é há muito estável, íntegra e coerente (art. 926 do Código de Processo Civil).
A Nova Lei do Seguro só vale para contratos celebrados a partir de sua entrada em vigor
A jurisprudência que já orientou tantos outros casos serve de guia para a aplicação intertemporal da Nova Lei do Contrato de Seguro. Um ponto é incontroverso: ela jamais invalidaria contratos anteriores – isso seria retroatividade máxima, o que nunca gerou dúvidas maiores. Assim e por exemplo, cláusula de arbitragem num seguro de grandes riscos firmada de acordo com o Código Civil e com a Lei de Arbitragem (Lei 9.307/96) continua válida sem ter que observar os requisitos do art. 129 da Nova Lei (exigência de que a sede arbitral seja no Brasil e de que o julgamento se paute no direito material brasileiro). O entrave maior– como mostram os julgados do STF e do STJ das últimas três décadas – costuma se dar no plano da eficácia dos negócios jurídicos. O contratante beneficiado pela nova legislação buscará aplicá-la aos efeitos pendentes de contratos assinados antes dela. É o exemplo das regras novas sobre regulação de sinistros citado na introdução deste texto.
O problema: essa linha interpretativa faz a lei retroagir. Voltando ao seguro típico: as obrigações principais das partes – para o segurado, pagar o prêmio, e para a seguradora, analisar e indenizar o sinistro – se constituem quando elas celebram o contrato. É aí que se cristaliza o direito material para regê-los até esgotarem seus efeitos. Apenas a eficácia das obrigações é que fica contida: para o segurado, geralmente há um termo para arcar com o prêmio (à vista ou parcelado) e, para a seguradora, há uma condição, ou seja, um evento futuro e incerto que é a materialização do risco. Note-se: entre a celebração válida e o implemento do termo ou da condição, se uma lei nova abalasse os efeitos que esse negócio projetou, essa lei seria inconstitucional. Ela seria retroativa – ainda que em grau mínimo.
Faz sentido que seja assim. Exceto em contratos instantâneos, as pessoas e as empresas celebram a vasta maioria de suas avenças hoje na expectativa de vê-las cumpridos em algum momento no futuro. Se a todo tempo uma lei pudesse atingir os efeitos dos contratos, as garantias constitucionais cairiam por terra. Qualquer planejamento seria inviável. Mesmo nas relações de trato continuado – em que as prestações se renovam periodicamente –, leis posteriores não atingem as obrigações em curso das partes. A propósito, o STJ decidiu: “Em avença contratual, mesmo constituindo relação jurídica de direito material continuativa, devem ser sempre respeitados os núcleos essenciais do direito adquirido e do ato jurídico perfeito”[9].
Sob o ponto de vista das garantias constitucionais, a única maneira de a Nova Lei incidir sobre efeitos futuros de contratos passados é por acordo entre as partes. É o que ocorreu com a Lei dos Planos de Saúde (9.656/1998) e os contratos anteriores a ela, em que os consumidores tiveram a opção de manter seus planos ou de adaptá-los ao novo marco setorial[10]. Mas veja-se bem: não se trata de incidência retroativa da lei, e sim de escolha dos contratantes com base na sua autonomia negocial.
Conclusão
O capítulo do Código Civil sobre o seguro (arts. 757 a 802) continuará aplicável a vários contratos de seguro mesmo depois da lei nova. Em específico: ele cobre os efeitos pendentes de contratos firmados antes de dezembro de 2025 – mesmo que se realizem mais tarde. Na teoria geral do direito isso se chama ultratividade: a norma revogada continua regendo os atos jurídicos perfeitos consolidados quando ela vigorava. Nada há de incomum nisso: irretroatividade da lei nova e a ultratividade da lei revogada são as duas faces da mesma medalha.
Se é certo que o mercado terá que se adaptar à Nova Lei do Contrato de Seguro, é também crucial que ela seja aplicada em harmonia com as garantias do ato jurídico perfeito e do direito adquirido. Como o STF e o STJ sempre enfatizaram ao tratar de leis similares, só assim o sistema jurídico preserva o valor da segurança – pedra angular de todos os atos da vida privada.
Notas de Rodapé
[1] Constituição, liberdade e interpretação. São Paulo: Malheiros, 2019. p. 17.
[2] ADI 493-DF, Plenário, Rel. Min. Moreira Alves, DJ 25.06.1992.
[3] ADI 1.931/DF, Plenário, Rel. Min. Marco Aurélio, DJe 08.06.2018.
[4] ADI 3.005/DF, Plenário, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 13.11.2020.
[5] Dentre todos: “E a retroação ocorre ainda quando se pretende aplicar de imediato a lei nova para alcançar os efeitos futuros de fatos passados que se consubstanciem em qualquer das referidas limitações, pois ainda nesse caso há retroatividade – a retroatividade mínima […]” (RE 188.366, Primeira Turma, Rel. Min. Moreira Alves, DJ 19.11.1999); “Tratando-se de contrato legitimamente celebrado, as partes têm o direito de vê-lo cumprido, nos termos da lei contemporânea ao seu nascimento, a regular, inclusive, os seus efeitos.” (AI 251.533 [decisão monocrática], Rel. Min. Celso de Mello, DJ 23.11.99); “[…] se a cláusula relativa a rescisão com a perda de todas as quantias já pagas constava do contrato celebrado anteriormente ao Código de Defesa do Consumidor […] a aplicação dele para se declarar nula a rescisão feita de acordo com aquela cláusula fere, sem dúvida alguma, o ato jurídico perfeito.” (RE 205.999, Primeira Turma, Rel. Min. Moreira Alves, DJ 03.03.2000); “Mesmo os efeitos futuros oriundos de contratos anteriormente celebrados não se expõem ao domínio normativo de leis supervenientes. (STF, AI 292.979, Segunda Turma, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 19.12.2002).
[6] STJ, REsp 1.498.484-DF, Segunda Seção, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJe 22.05.2019.
[7] STJ, REsp 1.249.484-MS, Terceira Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJe 21.05.2012.
[8] ADI 493-DF, Plenário, Rel. Min. Moreira Alves, DJ 25.06.1992.
[9] STJ, REsp 1.785.652/DF, Quarta Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJe 01.04.2019.
[10] O STF decidiu, com repercussão geral: “As disposições da Lei 9.656/1998, à luz do art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal, somente incidem sobre os contratos celebrados a partir de sua vigência, bem como nos contratos que, firmados anteriormente, foram adaptados ao seu regime, sendo as respectivas disposições inaplicáveis aos beneficiários que, exercendo sua autonomia de vontade, optaram por manter os planos antigos inalterados.” (RE 948.634, Plenário, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 18.11.2020).