A utilização da arbitragem como meio de solução de controvérsias é uma realidade no Brasil. Vagarosamente adotada e originalmente vista com desconfiança, hoje soluciona uma miríade de conflitos sociais, especialmente empresariais. O mercado, inclusive, foi e permanece sendo um dos grandes incentivadores dos procedimentos arbitrais, sobretudo por sua característica de celeridade quando contrastado ao Poder Judiciário brasileiro.
Os mercados de capitais, em especial, demonstraram grande apreço pelos avanços nacionais em matéria de arbitragem, com uma proliferação de câmaras arbitrais e árbitros especializados em conflitos empresariais. A BOVESPA, neste aspecto, cobra das empresas que aderem a seus diferentes níveis de governança corporativa a previsão de arbitragem para solução de controvérsias[1].
As câmaras arbitrais possuem seus próprios regulamentos, aos quais normalmente aderem as empresas que buscam seus serviços, o que torna a escolha da entidade a secretariar o procedimento arbitral extremamente relevante. Mas essa não é a única decisão a ser tomada ao optar a empresa por submeter-se à arbitragem, e talvez sequer seja a mais importante.
Isso porque tudo o que for convencionado entre as partes para regular a instauração do procedimento arbitral deve constar previamente em algum documento. No caso das empresas, isso normalmente é feito no contrato ou estatuto social e, dentro dele, na cláusula compromissória, que é o assunto central deste breve texto. Não entraremos nas vantagens específicas do que pode ser acordado entre os envolvidos, em termos de conteúdo, mas trataremos da forma da cláusula e como sua redação pode contribuir com, ou prejudicar, os interesses dos que a ela se submetem.
Os profissionais do direito bem sabem que cláusulas compromissórias podem ser “vazias” ou “cheias”. Grosso modo, aquelas apenas indicam a vontade das partes em submeter-se à arbitragem, sem especificar como, enquanto essas estabelecem regras específicas a serem seguidas. Para melhor compreensão, vejamos um exemplo bastante simplificado:
Cláusula vazia:todos os acionistas se comprometem a dirimir os conflitos societários por meio de arbitragem.
Cláusula cheia: todos os conflitos decorrentes de ou relacionados ao presente estatuto serão solucionados mediante arbitragem a ser instaurada na Câmara Arbitral de XYZ, conforme o regulamento desta. A lei aplicável será a brasileira, o idioma do procedimento será o português e o tribunal arbitral será constituído por 3 árbitros, sendo um escolhido por cada parte e o terceiro pelos dois árbitros nomeados.
Obviamente, ao mencionarmos uma cláusula bem elaborada, nos referimos a uma cláusula cheia. A cláusula indicada no exemplo acima sequer chega a cobrir todas as particularidades que uma relação societária específica pode demandar, mas contempla o essencial para que não haja uma disputa prévia sobre as próprias regras do jogo.
Essa prevenção é de fundamental importância quando se busca a celeridade e a confidencialidade do procedimento arbitral, características extremamente valorizadas no mundo empresarial. Quando é necessário recorrer ao Poder Judiciário para dirimir conflitos sobre as regras a serem aplicadas ao procedimento arbitral, este perde muito de seu apelo.
Especialmente importante é notar que, assim como vários outros sistemas jurídicos mundo afora, o ordenamento brasileiro reconhece o princípio da competência-competência[2], que considera o tribunal arbitral apto a decidir sobre sua própria competência ou questões relativas à validade do procedimento arbitral e da cláusula compromissória. Tal reconhecimento é explicitado nos artigos 8º e 20º da Lei Brasileira de Arbitragem[3] e no próprio CPC[4].
Significa dizer que se a cláusula compromissória dispuser sobre as regras necessárias à instauração do tribunal arbitral, este poderá desde logo analisar preliminares sem a necessidade de intervenção do judiciário. Para tal, entretanto, a cláusula compromissória deve ser adequada.
Essa adequação é necessária em virtude de sua autonomia, isto é, a cláusula compromissória válida adquire independência do contrato em que está inserida. Em outras palavras, uma cláusula bem construída pode sobreviver a vários vícios do instrumento, até à própria extinção do estatuto social, mantendo a vinculação dos envolvidos mesmo no pior dos cenários.
Para além desses conceitos de direito, a própria redação da cláusula pode ampliar ou reduzir seu alcance no que diz respeito aos fatos. Pode ocorrer, por exemplo, uma discussão a respeito da diferença entre uma cláusula compromissória abranger conflitos “decorrentes do presente instrumento” e “relacionados ao presente instrumento”.
A escolha das palavras, nesse caso, é extremamente delicada. A expressão “conflitos decorrentes do presente instrumento” implica em uma interpretação estrita de que deve o conflito ter surgido em virtude das relações ali contidas: uma disputa sobre venda de ações e direito de preferência, por exemplo. Por sua vez, os “conflitos relacionados ao presente instrumento” são muito mais abrangentes, e comportariam, inclusive, eventuais dissonâncias quanto a acordos de acionistas que porventura viessem a ser firmados e vinculados àquele estatuto.
Considerando esses breves apontamentos, cremos ser possível visualizar claramente a importância de uma cláusula compromissória bem elaborada. O Poder Legislativo vem prestando sucessiva atenção ao tema, como podemos vislumbrar nas recentes alterações legais da Lei das S.A., em seu art. 136-A[5], que agora traz uma vinculação expressa de todos os acionistas à cláusula aprovada para inserção em estatuto, ressalvado o direito de retirada.
Assim como em todos os demais temas abordados em contratos e estatutos sociais, a arbitragem é um mecanismo efetivo para a prevenção e solução de controvérsias, conquanto bem manejado. Contar com uma equipe técnica preparada desde a elaboração dos documentos sociais, portanto, é de fundamental importância.
[1]https://www.bmfbovespa.com.br/pt_br/listagem/acoes/segmentos-de-listagem/sobre-segmentos-de-listagem/
[2]https://cbar.org.br/site/jurisprudencia/competence-competence
[3]https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9307.htm
[4]Art. 485. O juiz não resolverá o mérito quando: […] VII – acolher a alegação de existência de convenção de arbitragem ou quando o juízo arbitral reconhecer sua competência;
[5]Art. 136-A. A aprovação da inserção de convenção de arbitragem no estatuto social, observado o quorum do art. 136, obriga a todos os acionistas, assegurado ao acionista dissidente o direito de retirar-se da companhia mediante o reembolso do valor de suas ações, nos termos do art. 45.