
A Nova Lei do Contrato de Seguro (Lei 15.040/2024), com vigência a partir de dezembro, altera a disciplina do agravamento de risco em relação ao Código Civil. A rigor, essas normas se aplicam a qualquer modalidade securitária – desde o seguro de varejo com consumidores até grandes riscos entre empresas. Isso gera problemas de encaixe normativo com espécies de seguro peculiares, como é o caso – eis o foco deste texto – do seguro-garantia de obrigações contratuais.
Esse seguro envolve um ajuste trilateral entre tomador, segurado e seguradora. O tomador é o devedor da obrigação principal, que contrata a apólice e paga o prêmio; o segurado é o credor; e a seguradora garante a obrigação, indenizando os prejuízos no caso de inadimplemento. O problema clássico envolve o segurado e o tomador que alteram o contrato principal sem informar a seguradora. É o que ocorre quando os contratantes assinam termos aditivos para aumentar o preço, incluir trabalhos no escopo, alongar prazos ou rever a matriz de riscos.
A reflexão que este texto inaugura é a seguinte: as normas sobre agravamento de risco da Nova Lei precisam ser ajustadas pela via interpretativa para que funcionem nos seguros-garantia. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça já usa conceitos flexíveis, aplicáveis aos seguros em geral, que podem ajudar nessa tarefa – com destaque para a boa-fé objetiva.
O agravamento de risco no Código Civil e na Nova Lei
O art. 768 do Código Civil define que o segurado perde o direito à garantia se “agravar intencionalmente” o risco do seguro. Já o art. 769 prevê um dever anexo de informar: cabe ao segurado comunicar o segurador, logo que saiba, de qualquer fato que agrave o risco “consideravelmente”. Lendo os parágrafos junto com o caput, extrai-se consequências jurídicas diferentes para dois cenários. Se o segurado silencia de má-fé, ele perde seu direito. Se o fez sem má-fé – ou “sem culpa”, como consta no § 1º –, o segurador tem o direito potestativo de resolver o contrato, com efeitos depois de trinta dias, devendo restituir eventual diferença de prêmio.
A Nova Lei do Contrato de Seguro inova esse regime. O art. 13, embora com outro texto, conduz à mesma norma do art. 768 do Código Civil: o segurado “não deve agravar intencionalmente e de forma relevante” o risco para conservar seu direito à garantia. (O texto do Código Civil é mais econômico, pois evita o curioso imperativo negativo “não deve”). A novidade crucial está no art. 14 e seus parágrafos. Ele separa textualmente o que acontece quando o segurado omite o agravamento do risco de maneira dolosa (§ 3º) ou culposa (§ 4º).
Pela lei nova, há três cenários para levar em conta, e não mais dois. Primeiro: se o segurado viola o dever de informar dolosamente, ele perde a garantia – além de arcar com o prêmio extra e com as despesas da seguradora (§ 3º). Se ele se omite de forma culposa, diz a lei, é necessário distinguir entre duas situações. Eis então o segundo cenário: se ainda for viável tecnicamente garantir o risco – mesmo que agravado –, o segurado conserva seu direito à garantia; ele só se obriga a “pagar a diferença de prêmio” (primeira parte do § 4º). Agora, se garantir o risco novo for “tecnicamente impossível”, ou se o risco não for “normalmente subscrito pela seguradora”, vale o terceiro cenário: o segurado perde a garantia, mas não precisa pagar adicional de prêmio nem ressarcir as despesas da seguradora (última parte do § 4º).
O regime de agravamento culposo é pouco operacional
É difícil pensar em como a solução para as omissões culposas se aplicaria aos seguros-garantia. Dois problemas surgem de plano. O primeiro decorre da sua estrutura trilateral: não é o segurado quem arca com o prêmio, e sim o tomador. O prêmio é o “preço” que o tomador paga à seguradora para que ela garanta suas obrigações junto aos contratantes. É comum que a empresa assine contrato de contragarantia ou instrumento equivalente com a seguradora para emitir várias apólices. Sem cláusulas bem alinhadas de antemão entre segurado, tomador e seguradora – o que faz sentido em operações mais complexas –, é pouco provável que os três cheguem a um consenso depois que o conflito se instalou.
E o segundo problema: provar que um risco é “tecnicamente impossível” de garantir. Essa norma foi pensada para os seguros clássicos de base atuarial: a seguradora faz cálculos estatísticos a partir de dados históricos para prever a frequência e o impacto dos riscos (tabelas de mortalidade, expectativa de vida, índices de sinistralidade). Neles, a seguradora até pode mostrar tecnicamente que certo risco é inviável de garantir: com laudos atuariais e tabelas de risco, por exemplo. O seguro-garantia funciona sobre outra premissa. Seu objeto é o risco de inadimplemento das obrigações por uma empresa específica (o tomador), num contrato também singular. O risco é técnico e jurídico: a seguradora avalia a capacidade, a competência e o caráter da empresa para definir se ela consegue executar o projeto. Ao calcular o prêmio, são relevantes também as contragarantias que a empresa oferece à seguradora se tiver que reembolsá-la.
O requisito do dolo deve ser lido conforme a boa-fé objetiva
Provavelmente, o debate na maioria dos conflitos em seguros-garantia será reconduzido ao § 3º do art. 14, ou seja, ao possível agravamento doloso do risco. “Dolo”, aqui, é inconfundível com o chamado “dolo civil”, que é defeito do negócio jurídico e o torna anulável (plano da validade – art. 145, Código Civil). O dolo nesse contexto é um atributo da conduta do segurado previsto no suporte fático da norma, que se estiver presente tolhe o seguro de seus efeitos (plano da eficácia). O termo é usado em sentido próximo ao do direito sancionador, como se nota pelo par conceitual “dolo e culpa”.
Se o dolo for lido em sentido puro, de “dolo específico”, o segurado só perderia a garantia se agravasse o risco – ou se omitisse um agravamento por outra causa – de maneira consciente e deliberada, querendo obter indenização que sabe ser indevida. O ônus de provar o dolo é da seguradora. É fácil ver o problema que uma leitura tão rígida criaria em processos judiciais ou arbitrais: o segurado que omite uma mudança contratual relevante dirá que agiu sem dolo específico. Basta aduzir que não teve o objetivo explícito de enganar. A lógica das regras sobre agravamento de risco vai além de só coibir a fraude escancarada. Seu âmbito normativo é mais amplo: elas existem para manter o equilíbrio entre os interesses em jogo.
A conduta do segurado não pode ser avaliada só em termos psicológicos, ao estilo do modelo voluntarista de contrato do século XIX. Em qualquer contrato, o comportamento das partes deve ser examinado a partir da boa-fé objetiva (art. 422; art. 765, Código Civil). Em sua função integradora, essa cláusula geral cria deveres anexos para todas as partes contratuais: deveres de informar, de cooperar, de agir honestamente. A análise é objetiva, fundada em padrões normativos de conduta a partir do que normalmente se espera no mercado – e não na busca psíquica sobre a “real intenção” do contratante. A doutrina reconhece que descumprir deveres anexos configura inadimplemento, independentemente de culpa[1]. E veja-se: a boa-fé aqui não tem nenhuma carga moral. Ela é um pressuposto econômico do sistema de seguros, mitigando assimetrias informacionais. A seguradora depende e confia na palavra do segurado e do tomador sobre as características do risco, tanto na fase pré-contratual quanto na de execução propriamente dita.
A leitura sistemática do conceito de dolo – e mais harmônica com a boa-fé – traduz um ato voluntário do segurado, omissivo ou comissivo, que assume os riscos de sua postura. Nessa linha, o STJ já decidiu que a “intenção” prevista no art. 768 do Código Civil não chega ao extremo de depender, sempre, da vontade específica de agravar o risco. Basta um ato voluntário do segurado que leve a esse resultado[2].
Caso se mantenha o vocabulário sancionador, o dolo previsto no art. 14 da Nova Lei deve quando menos abranger a chamada “culpa grave”. O STJ chegou a essa conclusão interpretando o art. 768 do Código Civil em linha com os deveres anexos da boa-fé: “O agravamento intencional de que trata o art. 768 do CC/02 envolve tanto o dolo quanto a culpa grave do segurado”[3].
Retome-se agora o seguro-garantia. Em contratos de obra maiores, o segurado é um empresário ou um ente de Administração Pública. Ele sabe – ou deveria saber – que mudar o contrato principal interfere no risco subscrito. Mais: qualquer alteração ao negócio jurídico passará pelo seu crivo, geralmente formalizada em termos aditivos –faz pouco sentido cogitar de atos “culposos” aqui. O normal, o corriqueiro, o esperado, é que o contratante informe essas alterações à seguradora para que ela reavalie o risco, renegocie as garantias colaterais com o tomador e, se for viável, emita o endosso respectivo à apólice.
Bem por isso, na prática as apólices de seguro-garantia preveem como causa de perda de direitos qualquer modificação ao contrato principal sem anuência da seguradora. O dever anexo de informar – com fonte imediata na lei – é reforçado como específica obrigação contratual. Nessas situações, é plausível supor que o segurado agiu de forma negligente, ou sem razão legítima, algo que pode levá-lo a perder o direito à indenização[4]. O que importa é menos a vontade de fraudar, e mais o desequilíbrio contratual tomado objetivamente.
Mas claro: a boa-fé vale para a seguradora também. Ela não pode negar a indenização por meras alterações formais ao contrato nem por mudanças sem nexo causal com o descumprimento. Vale enfatizar essa ideia-força: a boa-fé se impõe a todos no negócio jurídico como critério de conduta leal e correta.
Conclusão
As normas sobre agravamento de risco são fundamentais para o equilíbrio do contrato de seguro. A Nova Lei, se não revoluciona a disciplina do Código Civil, dará margem para inconsistências se for aplicada de maneira acrítica aos seguros-garantia de obrigações contratuais. Caberá à jurisprudência harmonizar o sistema a partir de precedentes consolidados no STJ nos últimos anos. O norte interpretativo era – e deve continuar sendo – a boa-fé basilar do seguro.
(*) Luiz Augusto da Silva. Advogado na Poletto e Possamai Sociedade de Advogados. Doutorando em Direito na UnB. Mestre em Direito pela UFPR. Especialista em Direito Empresarial pela FGV.
[1] Nesse sentido, o Enunciado 24 da I Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal: “em virtude do princípio da boa-fé, positivado no art. 422 do novo Código Civil, a violação dos deveres anexos constitui espécie de inadimplemento, independentemente de culpa”.
[2] “Ainda que não haja intenção de agravar o risco por parte do segurado, há prática intencional de ato que leva despercebidamente ao mesmo resultado, uma vez que a conduta torna a realização do risco previsível. Comportar-se de maneira a agravar o risco, principalmente, quando o próprio contrato dispõe que tal comportamento importa na exclusão da cobertura, é violação manifesta ao princípio da boa-fé. (EREsp 1.441.620-ES, Terceira Turma, Rel.ª p/ acórdão Min.ª Nancy Andrighi, DJe 23.06.2017).
[3] EDcl no AgInt no AREsp 2.496.335/PR, Terceira Turma, Rel. Min. Moura Ribeiro, DJe 09.10.2024.
[4] Por exemplo, o precedente a seguir do Tribunal de Justiça de São Paulo: “[…] Termo de compromisso firmado entre autor e a construtora, sem participação ou anuência da seguradora. Agravamento do risco. Reconhecimento.Indenização securitária indevida. […]” (Apelação Cível n.º 1082791-73.2018.8.26.0100, 38ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Fernando Sastre Redondo, DJe 17.11.2023).