
Não obstante as divergências doutrinárias acerca dos critérios que definem o conceito de fazenda familiar – a exemplo da definição de agricultor familiar prevista no art. 3º da Lei nº 11.326/2006, que considera, para fins de políticas públicas, aspectos como a dimensão da propriedade e a predominância da mão de obra familiar nas atividades econômicas desenvolvidas –, fato é que, como no mundo, a maior parte das unidades produtivas brasileiras adota um modelo de gestão familiar.
Nesse modelo, o negócio permanece sob responsabilidade direta de proprietários unidos por laços de parentesco ou por vínculo conjugal, os quais não apenas exercem as funções decisórias, mas também participam das atividades operacionais do cotidiano do empreendimento. É igualmente comum que os membros da família residam na propriedade e que o capital investido na atividade decorra de recursos oriundos do próprio grupo familiar, bem como que a sucessão na gestão do negócio ocorra de maneira intergeracional, assegurando a continuidade da fazenda no âmbito da mesma família¹.
Tal arranjo não se dá por acaso. O vínculo entre a família e o empreendimento rural, para além de enraizado nas tradições da cultura agrária, confere vantagens competitivas, como a confiança entre os gestores, dedicação na condução dos negócios, maior adesão a uma visão estratégica de longo prazo e transmissão intergeracional de conhecimento tácito e técnico².
Contudo, na ausência de mecanismos adequados de governança e gestão, esse modelo pode igualmente ensejar o surgimento de conflitos de natureza pessoal que poderão comprometer tanto a harmonia das relações familiares quanto a sustentabilidade e a longevidade econômica e administrativa do empreendimento rural. De acordo com estudo publicado pelo IPEA, somente 30% das empresas familiares chegam à segunda geração, e somente 5% à terceira³.
No setor agropecuário, essa tendência tem se confirmado. Comparação entre os dados dos Censos Agropecuários de 2006 e 2017 realizada pelo IPEA revela um aumento expressivo no número de produtores com idade superior a 55 anos, assim como uma queda acentuada no número de produtores com menos de 35 anos no intervalo avaliado. Tais dados evidenciam a migração das gerações mais jovens para empregos em grandes centros urbanos, fenômeno que impacta diretamente a continuidade do agronegócio familiar⁴.
Nesse contexto, o planejamento sucessório no âmbito do agronegócio constitui fator determinante para a continuidade e a longevidade dos empreendimentos familiares. Trata-se de tema que, embora envolva desdobramentos de ordem emocional, econômica e jurídica, ainda é, em grande medida, evitado no ambiente familiar, como se não dialogar sobre o assunto pudesse afastar a concretude de seus efeitos.
Como bem adverte a médica Ana Cláudia Quintana Arantes, especialista em cuidados paliativos, “morremos a cada dia que vivemos, conscientes ou não de estarmos vivos”⁵. A compreensão da morte como processo indissociável do ciclo da vida deve vir acompanhada da consciência e da disposição para o diálogo, ainda que difícil, sobre seus reflexos emocionais, familiares e – por que não – jurídicos.
Tratar a morte e seus efeitos jurídicos como eventos isolados é um dos equívocos mais recorrentes entre os proprietários de agronegócios familiares. O processo sucessório, quando adequadamente estruturado, deve integrar um plano estratégico que envolva a definição de um sucessor, a transferência patrimonial planejada e a organização da divisão dos lucros. A ausência desse planejamento, somada à pouca comunicação entre os membros da família sobre o assunto, constitui obstáculo à continuidade dos empreendimentos familiares no campo.
Portanto, desmistifiquemos o planejamento sucessório: trata-se, simplesmente, de uma ferramenta disponível ao proprietário rural para organizar a transferência da gestão e dos ativos financeiros e imobiliários do negócio a seus descendentes. Quando bem estruturado e executado, o planejamento sucessório não apenas assegura a continuidade do patrimônio e da atividade rural ao longo das gerações, como também possibilita uma cultura de sucessores, e não de meros herdeiros, promovendo, assim, a construção de um legado familiar no campo.
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¹ OLIVEIRA, Walber Machado de; VIEIRA FILHO, José Eustáquio Ribeiro. Sucessão nas fazendas familiares: problemas e desafios. Brasília, Instituto de Pesquisa Econômica (IPEA), 2018. (Texto para Discussão IPEA, n. 2.385). Disponível em: https://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/8358. Acesso em 10 jun. 25.
² Ibidem.
³ OLIVEIRA, Walber Machado de; VIEIRA FILHO, José Eustáquio Ribeiro. Sucessão dos negócios na agricultura: experiências internacionais e políticas públicas. Brasília, Instituto de Pesquisa Econômica (IPEA), 2019. (Texto para Discussão IPEA, n. 2.448). Disponível em: http://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/9314. Acesso em 10 jun. 25.
⁴ Ibidem.
⁵ ARANTES, Ana Claudia Quintana. A morte é um dia que vale a pena viver. Editora Sextante, 2019.