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Da relativização da teoria dos atos “ultra vires” no ordenamento jurídico nacional

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A “Teoria dos Atos Ultra Vires” surgiu em meados do século XIX, por ação das cortes britânicas, com o objetivo de evitar desvios de finalidade na administração das sociedades por ações e preservar os interesses dos investidores.
Com efeito, pela referida teoria, o ato praticado em nome da pessoa jurídica, por seus sócios ou administradores, que extrapolasse o objeto social seria passível de anulação. Ocorre que logo se percebeu a insegurança na aplicação do instituto em relação aos terceiros de boa-fé, razão pela qual a teoria acabou por deixar de ser aplicada na Inglaterra [1], berço de sua concepção, e veementemente flexibilizada nos Estados Unidos.
No Brasil, especificamente no que diz respeito às sociedades por quotas de responsabilidade limitada, a ultra viresdoctrine foi positivada no ordenamento jurídico com a entrada em vigor do Código Civil de 2002 (artigo 1.015, parágrafo único, inc. III), ao revogar “tacitamente” o Decreto n.º 3.708/19 (que regulava a constituição de sociedades por quotas, de responsabilidade limitada), o qual, em seu artigo 10 previa que pelos atos ultra vires, ou seja, os praticados para além das forças contratualmente conferidas ao sócio, ainda que extravasassem o objeto social, deveria responder a sociedade.
Como visto, no Brasil, o legislador, encampou a teoria quando já em desuso no direito inglês e flexibilizada no direito norte americano.
Todavia, atenta à peculiaridade do defasado instituto à realidade dos negócios jurídicos, a jurisprudência pátria tem relativizado sua aplicação em detrimento da Teoria da Aparência, a qual preleciona, de forma geral, como válidos os atos e negócios jurídicos realizados por quem, mesmo não legitimado ou impedido legal ou contratualmente de realiza-lo, incute e impõe a aparência de legalidade ao negócio à parte inocente, sobretudo quando o suposto ato excessivo tenha sido empregado em proveito da própria sociedade.
De igual modo, a jurisprudência tem se posicionado no sentido de não adotar a teoria dos atos Ultra Vires ainda que haja a contratação de obrigações estranhas ao interesse social, de modo a não prejudicar o terceiro de boa-fé, cabendo apenas a responsabilização do sócio e/ou administrador perante os demais sócios, em homenagem à Teoria da Aparência e à boa fé objetiva.
Este entendimento pode ser extraído do acórdão proferido pelo Egrégio Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial nº 704.546/DF [2].
Como visto, a adequação da inserir espaço ultra viresdoctrine há de ser verificada caso a caso, em respeito aos interesses dos terceiros de boa fé, cabendo à sociedade prejudicada, e em casos excepcionais, ao sócio prejudicado, buscar a reparação dos danos em face do sócio que atuou em excesso de mandato.
Portanto, a relativização do instituto no ordenamento jurídico pátrio privilegia e resguarda a segurança jurídica das relações negociais e evita o enriquecimento ilícito e a anulabilidade de negócios jurídicos plenamente, válidos, existentes e eficazes.
Neste contexto, somado ao número crescente de fraudes, ressalta-se a importância de uma prévia consulta jurídica de modo a evitar indevidas alegações de nulidades e discussões judiciais prolongadas e dispendiosas.

[1]COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. V.2 – sociedades. 16ª ed. Saraiva: São Paulo-SP, 2012.
[2]DIREITO COMERCIAL. SOCIEDADE POR QUOTAS DE RESPONSABILIDADE LIMITADA. GARANTIA ASSINADA POR SÓCIO A EMPRESAS DO MESMO GRUPO ECONÔMICO. EXCESSO DE PODER. RESPONSABILIDADE DA SOCIEDADE. TEORIA DOS ATOS ULTRA VIRES. INAPLICABILIDADE. RELEVÂNCIA DA BOA-FÉ E DA APARÊNCIA. ATO NEGOCIAL QUE RETORNOU EM BENEFÍCIO DA SOCIEDADE GARANTIDORA.(…)4. No caso em julgamento, o acórdão recorrido emprestou, corretamente, relevância à boa-fé do banco credor, bem como à aparência de quem se apresentava como sócio contratualmente habilitado à prática do negócio jurídico.5. Não se pode invocar a restrição do contrato social quando as garantias prestadas pelo sócio, muito embora extravasando os limites de gestão previstos contratualmente, retornaram, direta ou indiretamente, em proveito dos demais sócios da sociedade fiadora, não podendo estes, em absoluta afronta à boa-fé, reivindicar a ineficácia dos atos outrora praticados pelo gerente.6. Recurso especial improvido.(REsp 704.546/DF, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 01/06/2010, DJe 08/06/2010) (grifou-se)

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