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Contratos internacionais e o impacto da linguagem em sua formação

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Contratos internacionais e o impacto da linguagem em sua formação

Hélio Gilberto Belfort AmaralContratos internacionais e o impacto da linguagem em sua formação.

Por Hélio Amaral, Advogado e Bacharel em Relações Internacionais com MBA em Gestão Empresarial
 

Solucionar disputas envolvendo a linguagem em contratos internacionais é simples, certo? Basta fazer um contrato bilíngue e inserir uma cláusula padrão que indique uma das versões como sendo prevalente. Well, not so much.

Deixando de lado, por um instante, os contratos de consumo e os de adesão, que possuem características peculiares, um exame mais minucioso revela que a linguagem empregada em contratos empresariais internacionais é muito mais relevante do que pode parecer aos envolvidos, especialmente no afã de concretizar uma relação que já se estende no tempo. Note-se que não se fala aqui estritamente em língua, mas em linguagem, no sentido mais amplo da palavra.

Um estudo de 2010 trouxe ao mundo dos negócios, via publicação do artigo “Lost in Translation” no Wall Street Journal[1], o conceito de que é possível que a língua falada por uma pessoa influencie seu modo de perceber o mundo, e não apenas de pensar. O efeito cascata da discussão sobre o tema gerou certo debate[2] a respeito dos efeitos de tal premissa sobre os negócios, em um mundo cada vez mais internacionalmente integrado. Guardemos esse texto por um instante para retomá-lo a seguir.

Mesmo sem pender demais para um lado ou para o outro, é fácil percebermos que a língua afeta de forma dominante a comunicação empresarial contemporânea, esmagadoramente escrita. Percebemos isso facilmente na rotina da advocacia, quando uma mesma cláusula é interpretada diferentemente por pessoas que falam línguas diversas.

A razão para isso pode ser das mais variadas. Vale ressaltar três das mais importantes, para manter este artigo sucinto: as traduções, as diferenças culturais e as diferenças de direito. Todas elas afetam reflexamente as relações contratuais e, consequentemente, modulam os cuidados que se deve tomar ao redigir o instrumento de contrato.

Vejamos primeiramente o problema das traduções, que é o mais evidente. Não importa o quão bom seja o tradutor, sempre haverá mudança de sentido em versões e traduções. Algo do original sempre se perde. O poeta americano Robert Frost disse certa vez que “poderia definir poesia da seguinte forma: é o que se perde, na prosa e no verso, em uma tradução”.[3]

No mundo jurídico, isso é ainda mais perceptível quando a tradução não é feita por profissional do direito, mas um tradutor terceiro. Muitas das expressões legais, dos conceitos, dos brocardos latinos e das próprias palavras possuem significado particular em nossa profissão e merecem o devido contraste a seus equivalentes estrangeiros. Muitas vezes, a palavra terá que mudar para manter seu significado original.

Ora, poderia o leitor interpelar, isso ocorre com toda tradução técnica. Perfeitamente. Mas nem toda tradução técnica está a estabelecer normas que regem uma relação negocial e balizam a conduta das partes por semanas, meses e anos. O papel do direito, em especial o direito empresarial e contratual, é prevenir conflitos, antecipar e exaurir pontos de divergência por meio de um consenso ao qual as partes podem chegar. Não tem cabimento, portanto, desfazer todo esse trabalho ao se desapegar da rigorosidade na tradução, por melhor que ela seja.

Pode-se exemplificar esse tema de forma absolutamente corriqueira. Suponhamos um contrato de compra e venda de ativos digitais entre dois brasileiros residentes nos Estados Unidos, com cláusula de eleição de foro naquele país. Adiantaria estipular um contrato cuja versão em português seja a prevalente, no caso de haver discussão judicial sobre ele? Os tribunais americanos demandarão, como faz o judiciário brasileiro, a tradução ao inglês para apreciação de seus termos, o que invariavelmente os afetará.

A segunda razão para divergências interpretativas que este autor gostaria de trazer à discussão consiste em diferenças culturais, resgatando o texto “Lost in Translation” anteriormente mencionado. Se nossa língua modifica nossa percepção de mundo, mesmo que minimamente, há margem para que modifique nossa percepção sobre termos contratuais pactuados.

Muito além da própria redação do instrumento contratual, tais diferenças culturais impactam a fase de negociação e a própria formação do contrato, já que povos diferentes olham de forma diferente a diferentes coisas.

O estilo de negociação norte-americano, que prioriza a celeridade e o discurso direto, contrasta em grande medida com o estilo asiático de construção de relações duradouras e baseadas na confiança. Brasileiros, com sua informalidade e flexibilidade nos horários, devem redobrar os esforços em tratativas com alemães, que normalmente possuem um apego à formalidade e à pontualidade.

Embora os contratos e negociações digitais tenham amenizado, em grande medida, as diferenças que se percebem de forma mais marcante nas relações pessoais, as formalidades para celebração de negócios em diferentes locais ainda traduzem os costumes daquele povo.

Causaria estranheza a um inglês, diga-se, as formalidades notariais brasileiras com seu duplo requisito de validade. Da mesma forma, povos cuja oralidade é mais relevante na celebração de acordos poderiam ficar desconfortáveis com a publicidade típica dos contratos sobre imóveis na realidade brasileira. Saber navegar essas diferenças para extrair um documento que faça todas as partes sentirem que o construíram, em vez de ser-lhes imposto, é crucial para a continuidade da relação.

Finalmente, há o próprio direito envolvido nas relações contratuais. O direito como disciplina suscetível de interpretação. Um artigo muitíssimo interessante da Harvard Law Review[4] explicita a profundidade da interpretação jurídica e toca no que chamamos, no Brasil, de Hermenêutica Jurídica. As diferenças de interpretação linguística, interpretação conforme políticas públicas, interpretação literal. A visão americana é bastante diferente da que temos no Brasil, com um pragmatismo acentuado.

Vale a leitura. Afinal, como disse um dos maiores juristas franceses, Jean Carbonnier, “a interpretação é a forma intelectual da desobediência”[5]. Desobediência contratual, por sua vez, chamamos de outra coisa…

Se já é difícil haver harmonia entre as partes de um contrato puramente nacional, as complicações inerentes a uma diferença de linguagem em um contrato internacional são de caráter exponencial.

Esse cenário pode parecer sombrio, mas a formação jurídica dos bons advogados contemporâneos permite ultrapassar essas barreiras e harmonizar todos esses âmbitos. A formação no exterior com absorção da cultura local, a efetiva prática e experiência na utilização de língua estrangeira na atividade jurídica e a reiterada atuação em casos internacionais é fundamental.

Nosso escritório leva a sério essa diligência no atendimento a nossos clientes nacionais e internacionais, alocando profissionais capacitados e capazes de adequar nossos serviços e oferecer soluções à realidade de cada cliente.

[1] https://lera.ucsd.edu/papers/wsj.pdf

[2] https://www.economist.com/johnson/2010/07/29/lost-in-translation

[3] I could define poetry this way: it is that which is lost out of both prose and verse in translation.

[4]https://harvardlawreview.org/wp-content/uploads/2017/02/1079-1147_Online.pdf

[5] L’interprétation est la forme intellectuelle de la désobéissance.

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